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Senta aí, Zé. Senta e olha pro céu. Essa chuva parece que num quer parar mais. Sabe,
tem horas que até penso que tamo chegando no fim do mundo; mas num se avexe
não, qu’inda tá é muito longe de ele chegar.
-
Cê sonhô com isso, foi Bento?
-
Não. Num sonhei inda não; mas a gente pode sentir essas coisa, porque isso a
gente nunca tem de sonhar, a gente só sonha , Zé. Só isso , sente aqui no
peito, sabe?
O
coraçãozinho lhe parecia querer saltar pela boca, era tardezinha, quase noite,
e a chuva fazia tempos que já caía sobre o telhado, ainda não chegara a ser um
temporal; não obstante, aquela era a mais forte dentre as tantas chuvas que,
até então, havia precipitado por aquelas bandas. José ouvia atentamente tudo
aquilo que o seu amigo lhe falava, não que quisesse ouvi-lo falar sobre aqueles
acontecimentos, mas gostava de estar junto dele, e sabia que era seu dever
ficar ao seu lado; na verdade, José sabia que tinha um grande amigo com quem
poderia conversar tantas histórias quanto quisesse. Os outros eram amigos, mas
Bento era bem mais do que isso, ele era um grande companheiro, e, além do mais,
sempre sabia de tudo que lhe queria falar, entedia todos os seus problemas e
acalentava os seus sofrimentos. Com Madalena sempre fora diferente, o que
sentia por ela era um aperto bom no peito, um frio na barriga, que subia
devagar até disparar como fogos de artifícios no alto de sua cr’oa.
Os
outros meninos estavam na sala escutando uma velha história, das que Gentil
contava todas as tardes, sempre, olhando para o longe do seu passado, às vezes
aumentando alguma coisa, outras esquecendo de contar alguma parte da história.
Aqueles dois estavam na cozinha, e o cheiro temperado de um molho de quiabo com
abóbora começava a borbulhar na velha panela de ferro batido que se sustentava
nas grades do fogão à lenha.
O
semblante de Bento se fechou de repente; franziu a testa, como sempre fazia
antes de dizer alguma coisa de muito importante e, quase sussurrando para o
amigo, continuou:
-
Noite passada, eu sonhei muito, Zé, e vi que nós tava no meio também. Era como
se alguém viesse e me contasse, sabe como é? Tá vendo aquela nuvem pesada bem
no meio do céu? Pois é ela... Ela é quem marca todo o nosso tempo aqui nesse lugar,
Zé.
José
sentia o corpo todo estremecer, sentia medo, mas procurava disfarçar o seu
temor. Tentou falar qualquer coisa para se distrair, mas olhou fundo nos olhos
do amigo e, como se recebesse uma ordem de silêncio, deixou que ele
prosseguisse.
-
Cê deve ter prestado assunto que faz três mês. E essa de agora é a mais forte
de todas elas. É essa, Zé, que marca todo o tempo, e nós já tá bem na metade
dos fato. O homem já tá quase chegando e ele vai contar uma história, e essa
vai ser a minha história, Zé; e, então, eu vou ter que ir junto dele e é aí que
a chuva tem de parar. No dia que eu atravessar a pinguela do rio ela para, ela
tem de parar. Sabe, Zé, eu tenho que viver a minha vida, e ela é triste, muito
bagunçada e longe desse lugar, é longe daqui.
- Desse jeito ocê me assusta, Bento!
Se num fosse ocê quem falasse, eu num haveria de acreditar nessa história... Mas
cê volta um dia, num volta?
O rosto do menino se encheu de uma
luz estranha e, entre alegre e triste, ele disse:
-
Volto não, Zé. O rio já traçou o meu destino; cê num sabe não, mas é o rio que
é o guia de todo o Sanharó. Às vez ele para e fica olhando prá nós , Zé.
Outrora ele conversa também. Sabe o Loriano? Foi o rio que endoideceu com ele;
às vez ele chamava o menino prá ir banhar nas suas águas e ele vinha; um dia o
rio chamou e ele num quis ir, então o rio deu um grito bem forte e começou a
endoidar o coitado.
- E ocê viu tudo isso no seu sonho,
foi Bento?
-
Uma parte foi sim. Outra parte foi o rio que me falou... Ele disse que gritava de
madrugada pro Loriano ir nele banhar, e gritava como se fosse menina-moça, mas
ele num veio e, então, num grito estrondoso do rio ele se espantou e ficou
doido pelo mundo.
Os dois olhavam fixamente para o
rio, e, enquanto a chuva caía, ele pareceu quase parar só para escutar aquela
conversa que tanto intrigava o peito do menino José.
-
O rio conversa comigo, Zé. E nós fica é muito tempo nesse bate papo à toa. E
isso nunca foi num sonho não, foi ele mesmo quem disse prá mim; disse que
queria conversar com cê também, Zé... Mas acontece que ocê num quer ouvir o que
ele quer falar. Ele fala que ocê é muito bão, e é a raiz de tudo que há nesse
lugar. Às vezes ele brinca, mas sabe que é ele o vivedor de tudo isso daqui e
que, se der de um dia ele se acabar, tudo aqui também há de se acabar, Zé. Ele
num fala, nunca falou, mas no dia em que ele secar todo esse lugar também se acaba...
As palavras vinham como se fossem
conselhos de um velho ancião, outrora, pareciam apenas serem avisos desavisados
de um menino esperto.
- Num espera outra chuva desse
tamanhão não , Zé. De agora prá frente ela só vai é diminuir; essa vai por três
meses sem parar, mas as outra vem difícil – é como se fosse um castigo que se
tem de pagar pros céu. Cê num conversa com o rio, mas ele fala que gosta d’ocê;
ele diz que é amigo seu. Outro dia nós conversava, enquanto eu catava os feijão
prá mãe pôr prá cozinhar, e ele disse que todo mundo se acaba daqui... Uns vai
se embora e outros tem de morrer . Mas o rio disse que vai todo mundo, e ocê
tem de ficar, Zé; fica ocê e a Madalena, que é prá ela ser só sua, sua e de
mais ninguém. Ocê, Zè, é o filho do rio, ele te escolheu prá ser dele... Prá
ser uma parte dele, e só mesmo dele é que ocê é.
José, de certa forma, sentia-se
feliz, pois gostava de Madalena; mas apavorava-se com aquela história de que
ele fosse o escolhido para ser um filho do rio. Tinha medo de tudo aquilo que
Bento lhe havia falado, e vários pensamentos estranhos passavam em sua cabeça,
mas confortava-se ao olhar fundo nos olhos do amigo. Ele viu que os seus olhos
eram azuis e pareciam repletos de paz e alegria; então, um sentimento bom e
lenitivo tomou conta do seu coração, sentiu–se leve e parecia flutuar por entre
as estrelas do céu.
Bonita estória dos dois amigos.Mostra crendices e sentimentos de pessoas simples com o Bento e o Zé.
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