terça-feira, 18 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO 6)

          - Diacho, meu Deus. E essa chuva que num quer mais parar!

          - Reclama não homem. Reclama não, que Deus castiga. E, além do mais, ele sabe o que faz.

          Gentil fez que não ouviu e foi sentar-se no banco da sala. A porta estava aberta e, de lá, se podia ver a chuva caindo no terreiro. Não havia uma semana que ele tinha plantado o arrozal e a chuva já tinha chegado, havia atrasado o plantio, pois pensava que a chuva tardaria a chegar. A terra estava ainda muito fofa e, se não rezasse muito, perderia todo o seu trabalho. Ele pegou do fumo no embornal, às vezes pensava em parar de fumar, mas aquilo era automático e, se ficava nervoso, logo começava a preparar o cigarro. A chuva lá fora continuava caindo, era uma chuva grossa, daquelas que há muito não se via, e a lama já tomava conta de todo o terreiro.

          - O Sanharó agora parece que vai encher. Pelo menos isso!

          - É.

          - Vai ficar bom é prá pescar... A água enche tudo de lama e as traíra tem que sair prá poder pegar um pouco de ar.

          - Com esse tempo doido as criança tão ficando é todo mundo gripada.

          - É. Vou preparar a vara e o anzol e, se der alguma estiagem, vou buscar as minhoca prá mó-de ir pescar.

        - Sabe de uma coisinha. Eu vou é preparar é um chá de temperão e poejo prá dar pra esses menino, que talvez assim eles melhora tudo rapidinho.

           Gentil tratou de ir logo para o seu quarto, a fim de pegar a vara de pesca que sempre ficava enfiada numa das frestas entre as telhas de amianto e a parede barrenta, enquanto Luzia voltou para a beira do fogão, onde uma lata d’água fervilhava. Eles nunca foram de muita conversa e , quando se davam para qualquer assunto, por mais simples e corriqueiro que fosse, as palavras pareciam sair-lhes desencontradas; era como se elas saíssem meio que sem querer, como que numa preguiça ou falta de vontade e , logo que se davam conta, cada qual já estava em seu canto recolhidos, ambos calados como se aquilo nada mais fosse que a normalidade das coisas, como se ambos fossem bichos do mato, recolhidos em sua toca quente e segura.

         Madalena dormia tranquila, no jirau. Estava coberta dos pés até a cabeça e uma gosma de catarro grudento e amarelado começava a surgir do seu narizinho arrebitado, gripava muito facilmente e, às vezes, ficava demasiadamente fraca e era obrigada pela mãe a tomar chocolate de ovo e canela machucada - e era este o grande sacrifício da pequena menina.

Jeremias, Bento e Luisinho brincavam de fazendinha no quarto, e os bois eram pedacinhos de paus que Jeremias havia pegado no quintal. Todos os meninos tinham a pele um tanto acinzentada e os pés lhes eram rachados no calcanhar, mas o de Bento era o que mais doía e, muito constantemente, era perfurado por bicho–de-pé, que comumente se chama de bicho-de–porco, mas que Luzia se comprazia em tirar com um espinho de laranja ou uma pequena agulha embebida em álcool ou um pouco de pinga.

       Bento brincava sem fazer qualquer reclamação, mas sentia quase a toda hora um aperto no peito; ele era o mais calado entre os irmãos, mas sentia vontade de sair daquele lugar; um dia tinha escutado alguém falar de um lugar bonito e bem longe dali, e todas as noites sonhava com uma cidade diferente de tudo que conhecia e umas coisas estranhas, as quais nunca conseguira entender. Ele gostava muito de pensar, e, algumas vezes, pensava que um dia teria que sair e sentir as dores e os prazeres de um outro mundo, mas continha-se e sentia vergonha dos seus pensamentos, para ele, descabidos e sem propósitos, e, outroras, ainda, punha-se de joelhos sobre alguns caroços de milho e rezava baixinho, pensando que tudo aquilo fosse um grande pecado, um pecado feio e cabeludo.

      Era de manhã e a chuva parecia não querer dar trégua. Luzia se irritava com aquele tempo, pois sentia que o dia não passava, era uma morrinha pesada e tudo era uma lerdeza que só se vendo. Ninguém tinha mais nada para fazer e acabava ficando todo mundo muito mais preguiçoso. Deu um grito no cachorro e correu para pô–lo porta afora. A casa já estava toda enlameada e os buracos, que já eram grandes, quando chovia então, o chão afofava de todo, e eles pareciam agora bem maiores que o seu normal; parasse logo de chover e ela haveria de tampá-los um por um.  Olhou para a parede, toda feita de adobe e tabocas, e viu que já estavam quase ao ponto de desmoronarem sobre as suas cabeças, minava água por todas as brechas que se viam; fechou os olhos e sonhou com uma casa bem grande, feito às que tinha visto, certa feita, no Pitão, com paredes de tijolinhos e o telhado todo à francesa; o chão era de um cimento queimado, piso duro, ora avermelhado, ora esverdeado  , e as portas e janelas eram todas feitas em madeiras em lei, lixadas e com fechaduras e frisos em detalhes de prateado ou bronzeados.

O cachorro entrava novamente pela porta da cozinha; saiu para escorraçá-lo com a vassoura de taipava e viu que a chuva ainda parecia bem longe de ter um fim. Olhou para o Sanharó e observou que ele passava devagar àquela hora, e parecia quase querer parar e lhe dizer alguma coisa, era como se ele tivesse algum tipo de vida; sentiu um friozinho subir-lhe pela espinha, deu um sorriso cúmplice para ele e, com um jeito bem amigo, murmurou:

      - Enche meu velho amigo. Enche, e leva a tristeza de junto de nós, leva ela prá bem longe desse lugar de meu Deus.     
                                                              

      Luzia quase não pôde ver, mas o rio se encorpava sempre um pouco mais, enquanto ela lhe falava. Antes de entrar para a cozinha, benzeu-se com grande alegria e foi pôr mais água no arroz que já estava quase seco na panela.

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