- Gentil do céu! Corre que a casa de nós tá pegando fogo!
As alpercatas o atrapalhavam naquela corrida, era como se elas
atassem-lhe os pés e não o quisessem deixar correr, talvez fosse o medo que o
segurasse, ou ainda, podia ser a pressa em salvar os seus pertences que o atrapalhava.
Tirou as alpercatas e jogou-as na beira do rio, pondo-se logo de novo em
correria; corria como se fosse um louco ou se estivesse possuído por um espírito
que não lhe fosse próprio. Notou que Luzia estava tensa e, isso, conseguia ver
enquanto ela corria ao seu lado; a respiração da mulher estava ofegante e podia
ouvir as fortes batidas do coração no peito seu.
Gentil quis perguntar por Madalena,
mas sentiu um grande medo dentro do seu peito - tinha medo de perder a sua
filha - e era como se esse temor tapasse a sua boca, a fim de não ouvir uma
resposta inesperada; limitou-se apenas a continuar a corrida, enquanto, de
soslaio, olhava para a companheira desesperada e com lágrimas correndo pelo
rosto moreno. Os dois meninos também corriam do lado seu e via, em Jeremias e
Luisinho, dois homens fortes que lhe ajudariam a reconstruir a sua vida.
Bento era um menino estranho; nunca tinha sido de muita conversa e
ultimamente parecia estar ainda mais introspectivo. Assim que ouviu o grito e
os choros de sua mãe, sentou-se no meio do arrozal e, já com o rosto todo
banhado em lágrimas, pôs-se a rezar o Credo e a Salve Rainha. Ele não tinha
coragem de ver o acontecido, mas rezava para que tudo se pudesse logo se
resolver.
A corrida era, de fato, muito curta, no entanto, Gentil sentia que ela
parecia não ter mais fim, e, naquele caminho tenebroso, revia mentalmente todos
os seus sofrimentos, as lutas e as alegrias, enfim, a sua mente refazia toda a
vida que fizera naquele lugar, buscava ela remoer todas as suas dores. O seu
coração batia acelerado, num descompasso desgovernado, e ele começava a sentir
algumas tonturas, como que se pudesse cair ao chão de um momento para outro;
mas era forte e procurava se manter firme sobre suas pernas castigadas pelo
tempo e suas imposições.
O sol já ia alto – quase umas nove horas da manhã-. A despensa era
pequena e nela havia poucas coisas; existiam ali algumas palhas de milho para acender
o fogão, alguns garranchos de lenha e papéis velhos que serviriam de queima
para o fogo. E era naquele lugar pequeno e bastante perigoso que a pequena
Madalena tinha resolvido brincar com suas comidinhas de barro e folha de gramas
verdes.
Era dia de Sábado e tudo
na casa ainda estava para se arrumar; Luzia estava bastante atarefada e corria
de um lado para outro , pois a sua intenção era que tudo estivesse em seu lugar
até à hora do almoço, a menina brincava num cantinho do quarto sem que a mãe
visse motivo algum para se preocupar.
A mãe notou que um cheiro
diferente começava a se espalhar e, correndo para junto da filha, viu que o
fogo já começava a consumir toda a lenha da despensa. Madalena brincava com um
tição que havia pegado no fogão de lenha para acender o seu fogãozinho de
barro, no entanto, a quentura do objeto fez com que queimasse a mão, não pensou
duas vezes e arremessou a luminosidade contra um monte de palha seca, de forma
que, rapidamente, a labareda se espalhou pelo quarto e, logo após, por toda a
casa.
- E a Madalena, cadê ela, Luzia?
A pergunta saía com dificuldade da boca
daquele pobre homem, enquanto o medo e a angústia tomavam toda a sua aura. Ele
tentava se manter calmo, mas era difícil, era muito difícil.
- Levei ela pra junto do curral... – A sua voz
parecia trêmula.
- Meu Deus do céu, acho que vamos perder tudo,
homem!
- Não chora, Luzia. Cala a boca e
vem me ajudar... Temos que apagar esse fogo. Anda!
Enquanto o fogo consumia toda a casa
e os seus pertences, Gentil, Luzia e os meninos pegavam a água que corria pelo
Sanharó. Madalena chorava num cantinho do curral, enquanto Bento tentava
consolar o sofrimento dela, e, a todo custo, tentava também controlar a sua dor.
A tristeza tomava conta de todo aquele lugar, as aves não cantavam os seus
antigos e maravilhosos assobios e o rio parecia quase morrer de aflição.
A fumaça negra já estava muito alta e
não demorou muito para que Justino e Loriano chegassem para ajudá-los.
Carregaram água do rio por quase todo o dia, mas tudo aquilo tinha sido um
serviço infrutífero. Gentil sentia-se desolado, dicrocou sobre os calcanhares
e, enquanto picava o fumo para o seu cigarro, olhava para o maldito fogo, que
parecia não querer apagar. Logo, começou a desabafar, de si para si mesmo:
- Diabo dos inferno, tanto prá nada. Eu queria mesmo é morrer; queria
deixar essa vida de cão, que num tem mais melhora... Carecia disso não; não
mesmo!
Ninguém tinha coragem de repreendê-lo e não havia aquele que lhe viesse
passar uma palavra de conforto, sabiam do seu jeito e preferiam deixá-lo com
suas reclamações ao léu; estavam convictos de que apenas o tempo era quem
poderia apaziguar a sua raiva.
Luzia chorava baixinho no
seu canto, não gostava de interromper os pensamentos do marido, ainda mais
naquele momento difícil; por isso, procurava remoer, sozinha, as suas dores. Os
meninos, agora acompanhados por Bento e Madalena, estavam sentados a um canto
do quintal e olhavam para os céus sem nada dizerem, parecia até que cada um
fazia, em silêncio, a sua própria oração; um deles tentou obtemperar alguma
coisa, mas logo foi silenciado pelos irmãos; eles respeitavam a dor que
sentiam.
Justino estava pensativo e quase não dissera nada ao patriarca ou a quem
fosse da família; olhava para o que havia restado da casa velha e sentia grande
pena daqueles, eram velhos amigos, gente de grande valia que não merecia
tamanha sofreguidão. Ele parou sentado algum tempo junto à cerca do curral -
única sobra daquela tragédia - olhava para todo aquele mundo de terra boa e
relembrava os seus de tempo de menino, correndo por aquelas paragens, montando cavalos
em pelo e se banhando nas águas do Sanharó.
De repente, ele olhou para
Loriano, deu um sorriso e o chamou para perto de si, deu alguma ordem ao menino
e este saiu numa carreira desembestada no rumo de casa. Justino aproximou-se de
Gentil e tocando o ombro do amigo, obtemperou:
- Já é bem tarde, Gentil. E, além do mais, de nada adianta os resmungo
seu. Nós vai é todo mundo lá prá casa; fica todo mundo lá e depois cê vê o que
pode resolver da vida, nós vem e constrói tudo de novo, vamos...
Uma chuva mansa e caridosa começava a cair novamente no Sanharó, era o
dia vinte e cinco de dezembro, dia do nascimento do menino Jesus. O rio voltava
a sorrir e, agora, ainda mais, parecia brincar com as sua margens, batendo,
célere, de um lado para outro, fazendo ondas que, de uma hora para outra, vinha
bater de mansinho nas raízes das árvores, como se quisesse beijá-las.
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