sábado, 15 de julho de 2017

SANHARÓ (CAPÍTULO 4)

     Não havia mesa nem cadeiras naquela casa, e em nenhuma outra daquela região, afinal, este luxo não era assim tão necessário; era raro, entre os sertanejos, se encontrar ao menos um tamborete para sentar-se; frente às tantas necessidades daquele povo, tudo isso eram apenas superfluosidades. Era ainda muito cedo e o sol não havia nascido no céu. Justino estava dicrocado sobre os calcanhares; estes eram rachados e grossos como assim os são todos aqueles que se acostumam a andar descalços por entre matos, espinhos, tocos, forquilhas e cobras, além de outros bichos do mato; tomava o seu café adoçado com rapadura e comia alguns biscoitos de toalha que Margarida fizera na noite anterior, pouco antes de ir para a cama, estavam quentes ainda e exalavam um cheiro tão bom quanto um cheiro de menina–moça ainda nova. Era Segunda-feira e ele tentava espantar a preguiça que ainda teimava em permanecer no seu corpo, e, enquanto procurava coragem para seguir para o trabalho, olhava para as crianças que ainda dormiam no jirau, Geraldinho e José, ambos cobertos por um lençol velho, encardido e todo cheio de buracos, feito com restos de panos velhos que Margarida ganhara no natal passado; sabia que ele não era suficiente para tampar-lhes o frio, mas era tudo o que tinham e sentia-se feliz em, pelo menos Ter algo para poder cobri-los. Do outro lado, num canto escuro e frio, num jirau grande e muito duro, embrulhada em um lençol avermelhado, sua esposa rolava de um lado para outro procurando algum resto de sono para poder descansar, ela não dormira à noite, tivera sonhos esquisitos e alguns dois pesadelos.

     Justino era um homem que gostava de tudo aquilo que possuía; olhava para a esposa que, não conseguindo dormir, se levantava resmungando, tentando ajeitar o cabelo que, àquela hora, mais parecia um bolo de arame. As lembranças ainda estavam frescas em sua mente e, a todo momento, ele se aprazia em recordá-las. Ele tinha dezessete anos quando perdera a mãe,  aquela foi a sua maior tristeza durante toda a vida, pois era por ela que tinha maior apreço; o pai era severo e, vez ou outra, costumava dar-lhe muitas surras; tudo bem que fosse mesmo um menino levado , mas na maioria delas apanhava sem que houvesse aprontado qualquer motivo para a sova. Servia como saco de pancadas do velho. Quando estava nervoso, era nele que descontava toda a sua ira. O pai nunca o tinha pegado no colo para um carinho, não lhe dizia uma palavra de apreço, era como um coronel a comandar severamente o seu exército.

      Tinha sido difícil para o pequeno rapaz a perda da mãe, mas tão difícil quanto, foi saber que o pai se casaria novamente, pouco mais de dois meses depois do fatídico acontecimento. Aceitava todas as surras que viessem das mãos paternas; mas aquele novo casamento era para ele uma grande traição; não podia aceitar que o pai se casasse, gostava da mãe e não queria que ninguém viesse tomar o seu lugar. O pai não tentou qualquer tipo de aproximação e nem quis conversar, era rude como o são todos os sertanejos e não tinha tempo a perder com um moleque revoltado. O moleque que guardasse a sua ira para si, o velho era decidido e não voltaria atrás na sua resolução.

      Justino ainda tentou evitar que o casamento acontecesse, brigou, ameaçou ir embora para nunca mais voltar, mas de nada adiantou; passados quinze dias da última conversa, o pai chegou em casa com D. Joaquina , que trazia nos braços uma pequena criança; criança esta que, num futuro não muito distante viria a ser a mulher da sua vida – Margarida. Justino não se conteve; brigou novamente com o pai - embora soubesse que de nada mais adiantaria - e, resmungando os seus direitos, arrumou a sua mala com as poucas roupas que possuía, juntou todo o dinheiro que havia guardado debaixo do colchão e partiu para São Paulo. Certa feita tinha ouvido falar de uma cidade grande, que seria o novo eldorado, o paraíso perdido de todo aquele que não tivesse preguiça de trabalhar. Diziam que era uma cidade grande, em que tudo de bom se podia colher, pouco depois de plantado; não cria nessas conversas avulsas, mas sempre sentia vontade de arriscar; na verdade, queria sair e rodar o mundo em busca do seu destino, queria esquecer a traição paterna, queria buscar a mãe em lugar muito longe dali.

      Foram doze anos de muito sofrimento naquela cidade. Ali acumulara também várias estórias, umas esquisitas e outras um tanto engraçadas, com as quais entretinha os amigos em noites frias, junto ao calor da fogueira, enquanto tomavam uns goles de pinga para se esquentar; eram pessoas simples e sonhadoras que todas as noites se reuniam para ouvi-lo contar aquelas mesmas estórias. Eram as suas aventuras e desventuras, as quais contava como se fossem contos fantásticos para que ninguém acreditasse, mas alguns acreditavam e sonhavam uma aventura mágica de um rapaz bonito e corajoso que partira pelo mundo  em busca do seu destino, mas quem só pôde encontra-lo quando voltou-se para ouvir a voz do seu coração e que, depois de consultá-lo, regressou à sua gente para viver feliz para sempre. Justino não queria que eles soubessem, mas aquela era a sua verdadeira história, uma história fantástica mas muito real.

         Ele tinha voltado num dia de sol, poucos dias depois da morte do seu pai. A notícia chegou aos seus ouvidos como um sino em desespero; quase enlouquecera, seu pai morrera sem que Justino pudesse pedir o seu perdão; por pouco não entrou em desespero e deu um fim a sua vida; juntou todas as suas forças, levantou a cabeça e tentou, novamente, reconstruir a sua vida. Era o mês das flores e tudo parecia tão verde quanto a esperança daquele povo. Justino estava na flor da idade e, em sua face, misturavam-se a beleza da juventude e a sapiência natural do passar dos anos. Seu porte era altivo e seu olhar galante, era um daqueles rapazes em que se nota uma malícia encantadora e alguma pitada de comovente seriedade, era um clássico Dom Juan da literatura espanhola; seus cabelos eram negros e bastante lisos, parecendo dançar ao refrescante sonar dos ventos, e seu andar era rude, pesado e apressado, como o são todos os caminhantes sertanejos; não obstante, nele se encontrava um quê de diferente que encantava as pobres mocinhas daquele fim de mundo, era uma miscigenação de beleza e força, rebeldia e sentimento. Justino nunca havia frequentado os bancos escolares, mas era de grande esperteza e aprendera desde cedo a conhecer as malandragens da vida, era mestre em lidar com moças prendadas e mulheres de vida fácil, com jagunços covardes e homens de garbosa valentia. O destino levara-o novamente ao Sanharó e fê-lo maior herdeiro de tudo que pertencia ao velho pai – havia se tornado homem, com seus cargos e encargos – fez as pazes com as duas companheiras e passaram, os três, a viverem na maior harmonia; até que o tempo, o grande inimigo de todas as coisas viventes, e os contratempos da vida, traiu o seu coração: ele se viu apaixonado por Margarida, uma moça pequena de olhos grandes e enegrecidos, seu corpo parecia ser todo ele esculpido, como se fosse uma obra-prima da natureza, era tão prendada como muito difícil se há de ainda, nos dias de hoje, se encontrar; e aconteceu que ela também havia se prometido, ainda que apenas dentro de si, para que ele pudesse desfrutar do seu amor.

       José começava a adormecer novamente com o bico do seio de Margarida ainda preso entre as suas gengivas. Justino parecia desligado daquele mundo, como se estivesse em transe ou sonhando com os olhos abertos, mas ele ainda estava acordado e olhava toda aquela cena com intenso brilho nos olhos. O dia já estava amanhecendo e Loriano se levantava entre bocejos e resmungos:

        - Ê vida besta, meu Deus!   Quase num dormi com esses menino chorando e ainda mais já tá é na hora de trabaiá. Fosse num dia de Domingo e, por Deus do céu, que eles num chorava...    

          - Cala a boca Loriano. Toma o café logo e depois amola bem a enxada, vamo embora que hoje é dia de trabaiá pesado. Anda!


       Justino parecia mais feliz que sempre. No quintal daquela casinha os pássaros atravessavam os céus em bando desordenados fazendo grande algazarra, parece até que prenunciavam que aquele seria mais um belo dia.  

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