sábado, 28 de outubro de 2017

DRAGÃO

O homenzinho desce da árvore. O sol já começa a nascer detrás do morro. Do outro lado, a lagoa reflete um brilho forte, quase ofuscando os seus olhos. A espingarda, que descansava junto a um galho próximo, desce primeiro. Ele a desce devagar, segurando pelo cabo. Depois, pega o chapéu de palha, que se agarrava à ponta de outro galho menor, ajeita o cabelo bastante negro e o assenta com cuidado. Mais uma noite perdida.

Já no chão, esticando a coluna, judiada por toda uma noite mal dormida sobre um pequizeiro, o homenzinho excomunga o catingueiro. Bicho disgramado, deixa a gente toda a noite esperando à toa.. À toa! Depois, já recomposto e mais tranquilo, olha para a lagoa e pensa que, à noite, vai descer é para lá, pegar uns peixes, levar um litro de pinga, pescar a noite inteira debaixo da lua. Só não pode é chover... Mas com esse tempo doido, talvez nem nunca mais chova!

Enquanto desce por entre as macambiras, o homenzinho lembra de Dragão. Aquilo é que era cachorro de verdade. Tivesse ele ainda, nem que fosse um Peba levaria para casa. Aquilo que era cachorro! A espingarda balança de um lado para outro, tocando suas costas, dançando no ar. Bem que podia vender essa bicha, compraria uma bicicleta, ou, quem sabe, até um cavalo. Correria todo o lugar no lombo do bicho...


A venda ainda está fechada. Assenta-se no banquinho do lado da porta e fica esperando. O sono pesa os seus olhos. A roça, se quiser, que espere! Hoje é dia de descansar! Não tem certeza se é domingo ou segunda. Ainda não são nem seis horas. O jeito é esperar. O jeito é tomar uma pinga e ir dormir. À noite, se não chover, descerá para a lagoa. Os peixes ele pegará, com certeza. Mas, se Dragão ainda existisse, pegaria o catingueiro e ainda traria um Peba de lucro. Aquilo é que era cachorro! Aquilo é que era!

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

SANHARÓ

A parede era rasgada por uma grande rachadura, quase como o rasgo de um pedaço de papel. Um pau fazia as vezes de escora, até que ela pudesse refazer aquele lado. Uma tarefa difícil, pois era ainda uma casa de adobe e somente ela poderia consertar, afinal, os meninos não teriam tempo para isso, estavam sempre no mato, cortando lenha, enchendo e esvaziando os fornos.

O rio barulhava no quintal, como se quisesse dizer alguma coisa. Mas ela não tinha tempo para ouvi-lo. Não àquela hora. Ainda tinha que bater a massa para a mistura, preparar o almoço, lavar as roupas, carpir os matos do terreiro. Os cachorros corriam de um lado para outro, brincando com um Jacu, que, do nada, aparecera. Ao longe, uma nuvem de chuva caminhava lentamente. De certo, choveria, depois de muitas luas. As plantas agradeceriam.

Enquanto a massa descansava e o arroz secava a água no fogão à lenha, assentava junto à porta e ficava a observar o tempo. Algumas lembranças vinham e uma lágrima, timidamente, escorria pelo rosto. Mas não tinha tempo para as lembranças. Levantava-se e punha a água para a vaquinha, que lambia o bezerro no curral, bem junto da casa, como que num puxadinho.

Tinha que passar a vassoura na casa, jogar uma água para abaixar a poeira. As crianças não tardariam a chegar em férias. Será que os biscoitos seriam suficientes? Melhor seria garantir mais uma sacada de pães de queijo! Alguns macaquinhos saltavam nas copas das árvores, enquanto as nuvens já se achegavam sobre a casa. O rio barulhava no quintal, parecia brincar de um lado para outro, alegrava-se com a chuva, aprazia-se em vê-la andando de um lado para outro. Alegrava-se deveras.


Os tempos passaram. As chuvas já não caem como outrora. Ela já anda de um lado para outro, descansa apenas. A velha casa já não existe, o rio, dantes alegre e brincalhão, silenciou-se quase por completo. Os meninos já não vivem mais no mato, alguns se foram, viraram lembranças carinhosas. As crianças cresceram, enquanto o Sanharó já não é mais nem um quadro na parede: Apenas um rasgo na alma.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

PEDRO

Já perto da aposentadoria, Pedro fizera uma promessa: quando se aposentasse, compraria um sítio, lá mesmo no Tabocal, e tomaria conta das casas de todos os outros sitiantes. Ele não queria criar gado, carneiro ou galinhas; plantaria algumas plantinhas, que molharia duas vezes ao dia, e, enquanto tivesse forças, vigiaria as casas dos outros, que não podiam ficar o tempo todo na roça.

 Pedreiro de mão cheia, quase nunca ficava sem serviço, mas, a cachaça e as mulheres nunca o haviam permitido comprar sua terrinha. De segunda à sexta ficava na cidade. Morava num pequeno barraco, sem reboco, que construíra com a ajuda do irmão, que mora em São Paulo e vem visitá-lo uma vez ao ano. Nos finais de semana, punha-se a rodar pelos sítios do Tabocal. Almoçava na casa de algum conhecido, tomava o café da tarde nalgum botequim por ali e jantava e dormia na casa de outro amigo.

A aposentadoria demorara um pouco mais do que o esperado. Aposentara-se com três anos de atraso. Dez por cento do que recebera atrasado foi para a conta do advogado, enquanto boa parte do que restara serviu para comprar a sua terrinha, uns quatro campos de futebol. A terra não era boa para o cultivo, nem havia água para irrigação. Recebia a água do poço artesiano, que servia a todos e era controlada pelo presidente da associação. Vendera o barraco que tinha na cidade, construiu uma casinha para morar, simplesinha, mas acolhedora. Arranjou quatro cachorros, que perambulavam solitários pelas ruas, e sentia-se feliz.


Todos já conhecem os hábitos de Pedro. Alguns já nem trancam mais a porta de casa e outros ainda deixam um lanchinho para que ele possa se alimentar. Uns, mais folgados, faz tempo que não voltam ao Tabocal. Pedro não importa, nem se sente explorado. Tira a poeira dos móveis, varre a porta das casas, molha as plantas, dá de comer aos animais, tira o leite das vacas e, já tarde da noite, volta feliz para casa. Agora ele possui uma razão para viver. 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

CLÁUDIO

Sentado em uma pedra, Cláudio olhava para o céu. A chuva não tarda a chegar. E este pensamento ia se misturando a tantos outros que povoavam a sua mente. No dia de São Miguel havia chovido um pouquinho, bem pouco mesmo, algo como uma garoa, que nem bem molhara a terra. O ano que vem não será bom pra chuvas, a não ser que tudo vire. Se Deus não tiver dó, tudo isso aqui vira um grande deserto...

Cláudio se benzeu três vezes, procurou uma madeira e deu três pancadinhas. Que Deus perdoasse, às vezes, a gente pensa umas coisas meio sem pé nem cabeça. Mas o ano que vem não deve ser mesmo bom de chuva. Este ano começou até agradável, com pancadas para o lado de Pitão, algumas invernadas vindas de Água Boa e, dizem, no sul de Minas tinha chovido bastante; depois, já passado o meio do ano, tudo descambou para essa secura desvairada.

Ás vezes, Cláudio tinha vontade de xingar ao céus, dizer mesmo alguns palavrões, pôr para fora todas as suas insatisfações. Mas, e se Deus castigar?! O melhor era ficar quieto, guardar tudo dentro de si e rezar para que as coisas melhorassem. Onde ele estava já fora um rio frondoso, de águas violentas, tudo verde e bonito. Agora, tudo virou isso aqui: apenas pedras e terra, um toazão, só pedra e pó. A maioria dos sitiantes foi para a cidade. Alguns montaram vendas e vendem pinga para os que não arrajaram grandes coisas e viraram apenas beberrões, aguentando os desaforos dos filhinhos de papai, que acham que são os donos do mundo.


Cláudio, ás vezes, também pensa em ir para a cidade. Se vender o burro com a carroça, a casinha e a vaquinha com o bezerro, talvez dê para montar uma venda... Mas, e se nada der certo? E se um dos filhinhos de papai me encontrar pela rua, deitado nalguma esquina, embriagado, dormindo no relento? Não sou homem para aguentar desafios! O jeito é ir ficando, esperando pela chuva, que nunca vem.