segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A VIDA


            Do galho mais alto da mangueira ele pode ver boa parte da cidade. Sua casa fica no alto de um morro, perto da torre de transmissão, junto de um monte de outros casebres, construídos há muito tempo por alguma velha administração, quando a cidade ainda era uma minúscula povoação e pertencia à outra cidadezinha, aonde todos os velhos iam uma vez por mês para pegarem o dinheiro da aposentadoria e fazerem as compras do mês.

            Durante um tempo os velhos não tiveram mais quer ir à cidadezinha para pegarem o dinheiro da aposentadoria e fazerem as compras do mês. O povoado havia sido emancipado: ganhara um posto de saúde, uma unidade dos Correios, um pelotão policial e uma pequena prefeitura. Os velhos pegavam o dinheiro nos Correios e gastavam boa parte na única venda da nova cidade. Já não podiam comprar tudo o que compravam na cidadezinha vizinha, afinal, a variedade era menor e os preços bem maiores. Por isso, compravam arroz, feijão, fumo e pinga. Verduras e frutas colhiam-se nos quintais . E o resto eram coisas desnecessárias.

            Naquela época não havia jovens. Ou se era velho ou se era criança. Ele era apenas uma criança, enquanto seus pais já eram velhos. Nenhuma criança tinha mais que dez anos, já os velhos não contavam menos que sessenta primaveras. Ninguém trabalhava. Os velhos, aposentados, porque não aguentavam a labuta pesada da roça ou porque não tinham paciência para as aporrinhações da prefeitura, preferiam ficar sentados na porta da rua, olhando as crianças que brincavam e, por serem muitos pequenas, não podiam ainda trabalhar.

            Olhando a cidade por cima da mangueira, ele vê a lagoa lá embaixo, quase seca, sem grandes esperanças. Antigamente, quando ainda era criança, e os pais já eram velhos, ele descia para a escola e passava pela lagoa, onde pescava peixes e trazia cágados, que recheariam o almoço da semana. A velha não gostava que ele fosse até a lagoa, mas não dispensava os peixes e os cágados que trazia.

            Um dia, antes que o sol saísse, os pais foram para a cidadezinha vizinha buscar o dinheiro da aposentadoria, pois, com a paralisia da nova urbe, os Correios resolveram fechar a unidade local, restando apenas o posto de saúde, o pelotão policial e a prefeitura. O menino desceu para a escola, com a incumbência de preparar o almoço e cuidar dos bichos no quintal. Neste dia não passara pela lagoa e no almoço comeu apenas arroz e feijão.

            Dez anos depois os pais ainda não voltaram. Um pessoal da prefeitura foi até o casebre no alto do morro e, como ele insistisse em esperá-los, garantiram uma ajuda que o permitisse viver ali até que se tornasse adulto. Depois de um tempo não voltaram mais, embora deixassem todos os meses debaixo da porta um envelope com algum pouco dinheiro.

            Do último galho da mangueira ele observa a cidade. O posto de saúde acabou de fechar as portas, enquanto um Jeep sobe, com os dois últimos policiais, a ruazinha que dá para a cidade vizinha.  Talvez os pais não voltem mais. Quase todos os velhos tinham morrido, enquanto as crianças, agora homens e mulheres, tinham ido embora para a capital. O dinheiro do mês ainda não foi colocado debaixo da porta do casebre e talvez já seja a hora do rapaz ir embora.

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