domingo, 1 de dezembro de 2019

O SONHO DE REIS

Acho que fiquei cismado com a morte dos filhos de Tião e, por isso, essa noite me foi cheia de pesadelos. Candinha assustou-se com os meus berros e, depois de me acordar, foi até a cozinha fazer um chá de camomila, pois eu tremia a e suava feito louco. Depois me abraçou e, sem perguntar com o que eu havia sonhado, acariciou meus cabelos até que eu dormisse novamente.

Era uma manhã de sol. Candinha já estava na cozinha preparando o café adoçado com rapadura quando me levantei. Fiz minhas ablações e sentei-me na varanda, de onde observava o gado pastando na manga em frente. Tonico já havia tirado o leite e fazia os queijos na casinha dos fundos, enquanto o seu menino mais novo brincava de campear os cachorros no pasto.

A minha esposa do Arnaldo trouxera o café com broas de milho e cabos de machado; assentara-se ao meu lado e começou a bebericar, enquanto me falava amenidades. Conversamos por um tempo, até que a esposa do Tonico me viera chamar; disse que o marido estava precisando de coalho para terminar os queijos e que se demorasse perderia toda a produção do dia.

Achei estranho que logo a esposa me viesse falar. A dona de Tonico quase nunca saía de casa, sempre era o marido quem falava por ela; era uma mulher arredia, avessa às socializacões. Ainda assim, não atinei que pudesse estar tramando algo. Antes que eu a indagasse, afirmou que o marido estava às voltas com o leite, lutando para que não o perdesse e, por isso, tinha mandado-a ter-se comigo.

Os três homens ainda estavam dormindo, pois ficavam rondando pelo Sarará durante toda a noite, vigiando a chegada de estranhos. Pensei acordá-los, mas achei que não seria de bom tom fazê-lo, além disso, ainda era bem cedo e ninguém haveria de estar de tocaia àquela hora. 

Desci até as baias, arrumei o cavalo e desci para o Pitinha. Candinha me olhava da varanda, com  sorriso nos lábios, enquanto a esposa do Tonico parecia tensa ao seu lado. Não me demoraria, compraria o coalho e logo estaria de volta em casa. Minha esposa não tinha por quê se preocupar.

Talvez eu tenha andado um quilômetro ou pouco mais. A estrada estava silenciosa, sem nem ao menos os pássaros cantarem. Não havia vento àquela hora; contrário aos dias anteriores, seria um dia de sol forte, bom para as roças darem uma respirada. Um alívio para o pasto e um descanso para os bichos.

Eu assobiava uma música qualquer, quando, de repente, um tiro. Tudo parecia rodar e, sem ter como me segurar, caí bruscamente do cavalo, que saía em disparada de volta ao Sarará. Um homem soltou um grunhido, fazendo o bicho estancar; amarrou-o num pequizeiro e acariciou a sua crina. Depois veio caminhando lentamente para o meu lado, com uma arma em punho:

- Bom dia, Doutor Reis. Sentiu saudades de mim? Soube que estava me procurando, depois que os filhos de Tião tentaram me matar. E Candinha, tem cuidado bem dela?

Aquela voz não me era estranha. A vista estava embassada, pois eu havia caído com a cara no chão. Aquele só podia ser o Arnaldo, que tinha vindo se vingar. Tentei dizer alguma coisa, mas a voz não saía; esforcei para me levantar, mas não tinha forças. Resignei-me ao meu fim e comecei a rezar silenciosamente, lembrando-me de Candinha sorrindo na varanda.

- Não se preocupe, Doutor. Isto não vai demorar. O senhor vai logo se encontrar com o seus dois capangas; Joaquim e Luciovânio já devem estar esperando pela sua chegada. Tonico deu um jeito nos seus homens e, quanto à Candinha, pode deixar que darei a ela um fim digno, assim como aquele que ela queria e eu não deixei. 

O homem se benzeu, olhou para o céu, empunhou a arma novamente e atirou. Foi quando Candinha me acordou. Meu coração parecia saltar pela boca e uma sensação estranha tomava o meu corpo. Era como se aquilo tivesse mesmo acontecido.

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