terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O MESTRE DO ESQUECIMENTO


Talvez algum cronista mais gabaritado já tenha dito que esquecer é uma arte. Pois então eu afirmo que nesta arte eu me dou de mestre. Aqui no Pitinha, apesar de toda a simplicidade vigente, não somos muito afeitos às falsas modéstias, sobretudo ao se tratar de coisas de tamanha monta. E ainda, se bem procurar, sempre se há de encontrar algum mais encorajado que confirme tudo o que este ou aquele diz, tendo isso sido visto ou apenas ouvido.

Minha carreira de esquecido remonta aos longínquos tempos da infância, pois, convenhamos, assim como os craques das quatro linhas, nenhum mestre se forma da noite para o dia, sendo necessários alguns bons anos de treinamento e, sobretudo, de pequeno esquecimentos. Ainda assim, não se precisou de mestres ou cartilhas e tudo se deu pelos simples caminhos da natureza.

Como toda criança esquecida, caminhei muitas vezes pela rua, cabisbaixo, repetindo em sussurros os pedidos de minha mãe: dois quilos de quiabo, um pacotinho de ki-suco de uva e três cebolas; dois quilos de quiabo, um pacotinho de ki-suco e três cebolas, dois quilos de quiabo, um ki-suco e três cebola; dois quilos de quiabo, um kissuqui e... 

Seu Estanísio era quem sempre guardava a minha bicicleta – uma velha Monareta vermelha – quando eu a esquecia na porta do armazém; até que um dia também ele esqueceu. A pobre magrela passou toda a tarde e a noite deitada solitária na beira da calçada, até que no outro dia, já quase na hora do almoço, depois de tanto procurar, levei-a para casa.

Os  esquecimentos têm piorado sempre mais e, por isso, já não carrego guarda-chuvas ou bonés. Estes ficam pendurados em pregos logo acima da velha sapateira, enquanto aqueles já não tenho mais em casa, pois andam todos perdidos por aí.

Talvez já nos derradeiros estágios do esquecimento, pouco tenho me lembrado das velhas desavenças, das tristezas sofridas, dos sonhos não realizados e, para não esquecer os compromissos marcados e as promessas a serem cumpridas, acabei por comprar uma agenda, um belo calhamaço de capa negra trabalhada. É uma pena que sempre me esqueço de usá-la.

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