sábado, 19 de agosto de 2017

GILDA

Hoje, me peguei pensando em Gilda. (E quem ainda não teve o prazer de conhecê-la, por favor, retorne aos dois textos que fiz para ela, pesquisando na caixinha de pesquisa, bem acima, ainda nesta página) Fiquei pensando sobre o que terá acontecido com ela e o seu namorado. Terão os dois se casado, ou será que o roxo amor do embriagado Romeu não passava de delírios alcoólicos?

Se casados estiverem, será que ele cumprira as suas promessas? Será que ambos se tratam, ainda, por apelidos carinhosos, ou será que já se chamam apenas por “ou”? Ainda me vêm à ideia as tantas fisionomias de Gilda, afinal, quantas Gildas devem existir neste mundo, sendo amadas por bêbados amorosos capazes de vender tudo que têm, ou mesmo o que não lhes pertence, para juntar-se ao seu amor!

Soturnamente, sou poeta. E, enquanto poeta, como ofício, tendo a imaginar toda a maldita poesia agreste no amor da pobre Gilda. Por isso, enquanto fecho os olhos, em busca de alguma derradeira imaginação, posso encontrá-la com os cabelos desgrenhados preparando já o jantar, com a barriga toda suja, encostada num velho fogão à lenha, numa mísera casinha de adobe, enquanto o seu esposo, embora nunca tenham se casado de verdade, pois “amigado com fé, casado o é”, tira o último forno de carvão.

Talvez Gilda já tenha filhos. Pode ser que ela já traga, arrastados na barra da saia, dois catarrentinhos, que brincam o tempo todo no quintal, pelados e com a pele toda acinzentada. Quem sabe Gilda ainda traga um outro molequinho na barriga. E este não há de ser o último, afinal “Deus sempre ajuda a criar”. E, desse jeito, tenho a certeza de que ela é feliz. Assim são todas as Gildas que por aí existem, embora com fisionomias diferentes, com pensamentos e ideais distintos, mas todas sabedoras de que o amor ainda é o melhor remédio para todas as desventuras.


Talvez Gilda tenha se casado. Mas, pode ser ainda, que o nosso desgraçado Romeu tenha adormecido embriagado no passeio, naquela noite fria em que fizera tantas juras a sua amada. E, no dia seguinte, nem mesmo se lembrasse de quem realmente era Gilda; enquanto a pobre amante esperava, toda cintilante, pela chegada do seu príncipe encantado.   

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

MENINICE

O Pitinha ainda é um lugar onde as crianças brincam na rua. Com certeza, já não mais como brincávamos antigamente. No meu tempo de criança, quando ainda não havia tantos carros dirigidos por malucos ávidos por velocidade e nem tanta violência gratuita, quase todos os meus amigos estudavam de manhã. Os desenhos que curtíamos iam ao ar depois das cinco da tarde e os deveres de casa eram feitos logo depois do almoço, dentro de meia-hora, quando muito. A tarde, portanto, era toda nossa. Era um tempo longo e livre para brincarmos de tudo o que quiséssemos, onde bem entendêssemos.

Ainda vejo, na minha rua, alguns meninos e meninas brincando na porta de casa, sob os olhares vigilantes dos pais, sem a liberdade que tínhamos noutros tempos. É certo que alguns prefiram ficar em casa, cutucando as redes sociais ou assistindo aos desenhos na tevê; mas, ainda existe uma centelha que inspira aos mais velhos uma pontinha de esperança. Eu não seria louco de imaginar um bando de garotos correndo pelas ruas armados de tocos e gravetos, brincando de polícia e ladrão, nem tão ingênuo ao ponto de pensar que brincariam de “caiu no Poço”, sem segundas intenções. Já não vivemos os anos 80 e 90.

Às vezes, como quase sempre acontece com os infantes atuais, sentíamos tédio. Era difícil, mas, de tanto brincar, Existiam os momentos em que faltava saco para as velhas brincadeiras e, por isso, vez ou outra, fazíamos qualquer asneira; mas, como diz o ditado: “Deus protege os bêbados e as crianças”. Talvez, por isso, sentíamos no direito de pegar alguns gravetos e fazer uma “macumba” para que a velha Rural Willis do vizinho sumisse da frente de casa; assustando-nos, no outro dia, quando ela já não estava mais lá; ou de pegar a “traseirinha” de uma velha Picape, depois que o motorista já nos tivesse mandado descer. E foi numa destas que eu quase me lasquei.

Era uma tarde tomada pelo tédio. Robertinho e eu, assentados no degrau mais alto da calçada, escutávamos as conversas que rolavam no boteco do meu pai, geralmente, coisas à toa, banalidades e filosofias que nasciam e morriam entre os goles de cachaça. A velha Picape estava parada à nossa frente, com o seu dono bebericando o seu último copo de pinga, enquanto maquinávamos o nosso intento.

O carro deu partida e seguia devagar. Penduramo-nos na carroceria do carro e seguimos. Como o homem havia avistado a nossa subida, o veículo não ganhou grande velocidade e, depois de dobrar a esquina, parou lentamente para que nós apeássemos. Descemos e já íamos voltando para a porta do boteco, quando Robertinho ordenou:

- Vamos de novo, mas não deixa ele ver, senão ele não corre!

Subimos novamente, escondidos, na traseira da Picape, que rapidamente desenvolveu a sua velocidade. O vento me soprava o rosto e uma incrível sensação de liberdade tomava conta de mim; as casas passavam rápidas ao meu lado e, olhando para baixo, o asfalto corria em carreira desabalada. Eu nunca havia pegado “Traseirinha” de carro algum e não sabia como descer. Se continuasse em cima do carro, breve já não saberia como voltar.

- Vou pular. Depois você pula também. O carro tá ganhando velocidade!

Robertinho pulou e ficou à minha espera. Puxei o fôlego, segurei o ar e pulei. O pulo teria sido magistral, se eu tivesse me lembrado de soltar as mãos da carroceria. O dono da Picape não nos viu subir, logo, também não viu quando pulamos; arrastou-me por alguns metros, com o asfalto comendo os meus dedos, meus joelhos e cotovelos, até que eu fosse de encontro a um buraco no meio da rua. Com o bate no buraco, dei um salto para cima e, automaticamente, soltei as mãos da carroceria, estatelando-me no chão.


Lembro-me de que fui embora chorando, cheio de dores e com medo da minha mãe. Já em casa, ainda me recordo da surra que levei com um velho cinto de couro e, depois, sob os veementes sermões de minha mãe, da espátula do mertiolate tocando os machucados e ardendo até a alma.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

ARNALDO 1

Sente-se nesse banco e, por favor, reconsidere algumas falhas e mesmo alguns sentimentalismos meus; afinal, não é fácil relembrar um amigo de tão longa data. Mais que isso, o Arnaldo era um irmão que eu nunca tive. É verdade que, enquanto aqui esteve, nunca me veio a ideia de abraçá-lo ou dizer qualquer palavra de apreço. Você sabe... Posso chamá-lo de você?... Aqui no meio deste cerrado, junto das vacas e dos cavalos, acabamos por nos tornar duros, meio bicho mesmo. Falo de mim, que, às vezes, ainda me escondo das pessoas que me procuram ou invento alguma mentira só para não ter que estar junto de outros indivíduos. Veja você que prefiro conversar com o meu cavalo, enquanto perambulo por estes campos, a conversar amenidades com algum velho conhecido. Deveras, conversar mesmo, apenas com o meu amigo Arnaldo, que todos os dias vinha a minha casa tomar uma pinguinha e filosofar sobre coisas de pouca monta.

Interessante que você tenha vindo falar justamente do amigo. Não desacredito, quando diz que as histórias do Arnaldo têm corrido por este mundo a fora; o povo gosta mesmo de conversar. Só espero que a minha esposa do meu amigo não nos ouça, temo que ela fique meio atordoada com as lembranças que lhe contarei, se você tiver tempo e paciência de escutá-las. Pode ser que em nada isso acrescente às suas pesquisas; além do mais, nem sei que importâncias teriam as lembranças de um pobre desgraçado às páginas de um livro, de um blog, ou, mesmo, de um caderninho de anotações. Mas não julgo o seu interesse, cada um deseja o que lhe vier na telha.

Lindaura. Esse é o nome dela. E, você ainda há de vê-la, o nome faz jus a ela. Ainda é tão bonita quanto em quando era a esposa do meu amigo e vinha a minha casa, acompanhando-o, como uma mãe, na flor da idade, que leva seu pequeno filho à escola. Lindaura sempre fora uma mulher cheia de si, sempre com o cabelo solto dançando de um lado para outro, o rosto pintado e os lábios sempre cobertos por um vistoso batom vermelho. O Arnaldo, pobre coitado, vinha quase que arrastado pela esposa, com a sua cara de inocente e a felicidade com vergonha de se mostrar. Ele trazia sempre um sorriso tímido no rosto, como se isso irritasse alguém e, por isso, lhe causasse certo constrangimento. Mas, é inegável que ele sentia-se feliz ao lado de Lindaura.

Vejo que você não gosta de cachaça, se não, tem pouco o hábito de bebericá-la. Pois bem, Lindaura está na cozinha e, certamente, prepara um cafezinho para o nosso deleite. Também deve estar preparando um bolo de fubá. Sinta o cheiro, ela tem mãos de fada para essas coisas! Se quiser, mando que faça alguns beijus ou xiriris; ela é boa e, rapidinho, prepara tudo isso... Então, continuemos. Primeiro, um golinho para o santo... Essa é das boas!

Uma data certa não sou capaz de lhe dar, afinal, quando voltei de Montes Claros, ele já estava por essas bandas. Sim, eu era ainda um rapaz, tinha cursado o ensino médio, fiz um curso técnico e fiquei perambulando por lá durante um tempo. Conforme ele dissera depois, tinha vindo da Lapa do Bom Jesus, fugindo da seca, procurando algum recurso de vida. Nada mais dissera sobre si, e, confesso a você, também eu nunca perguntei.

Meu pai o empregara como vaqueiro. Tinha que ajudar os outros, tirar o leite das vacas, roçar os matos à beira da casa e, sempre que necessário, ir à cidade comprar coisas para a cozinha. Eu sempre lhe dissera que era o meu menino de recado, pois, nas festas que íamos por essas bandas, era ele quem sempre levava os meus recados às namoradinhas. O Arnaldo nunca se irritava com essa minha provocação, e, confesso a você, essa indiferença e resignação sempre me causava raiva do amigo.

Não se preocupe, amanhã continuamos a falar sobre o meu amigo. Mas, antes que parta, tomemos o café e comamos as guloseimas que Lindaura preparou. Depois da sua partida, ficarei um pouco mais nessa varanda. Vou esperar; quem sabe o meu amigo ainda volte. Sinto saudade das nossas conversas, enquanto bebericávamos os nossos goles de cachaça comendo torresmo e olhando o gado no pasto. Mas, se ele vier, me encontrará prevenido; sempre tenho o meu revólver a tiracolo e os olhos sempre abertos, afinal, seguro morreu de velho!  

  


sábado, 5 de agosto de 2017

AS LEMBRANÇAS DO POBRE ARNALDO

O Arnaldo é uma lembrança sobre quem não gostamos de lembrar, mas que a todo tempo nos assola. De vez em quando, vejo a minha sua esposa choramingando pelos cantos. Ela nunca me diz qualquer palavra sobre o marido, mas, sinto que a tristeza, ou algum sentimento obscuro, por vezes, toma a sua alma. E eu a entendo. Também eu sinto saudades do amigo.

Nesta manhã, enquanto tomava o meu café com pães de queijo, requeijão e alguns pedaços de bolo de fubá, observando as vacas que pastavam e os pássaros que cantavam na mangueira bem de frente a minha casa, eis que a lembrança do amigo me viera à mente. Senti que ele assentava-se ao meu lado, talvez querendo um trago de cachaça, como sempre tomávamos em quando vinha à minha casa. Meus olhos quase lacrimejaram e, por precaução, tratei de segurar firme o revólver que trazia debaixo do blusão.

É verdade que sinto falta do amigo, das nossas conversas, das discussões filosóficas e dos tragos de pinga, mas, e se tudo isso não fosse apenas a saudade trazendo as velhas recordações?! Ouvi, certa feita, pelos lados de Ibiaí, da boca de uma rezadeira, que somos capazes de sentir a presença de um inimigo, quando ele se aproxima, assim como também sentimos a presença da morte, assim que ela nos bate à porta.

O Arnaldo nunca fora um inimigo meu, mas, ninguém conhece o coração alheio. Ademais, entre o saber se vive ou se está morto, o melhor é ficar precavido. Espero ainda a vinda do amigo. Que venha num dia de chuva, quando eu tomar o meu café da manhã, e beberemos juntos, faremos uma “boca de pito” e colocaremos em dia todas as prosas que deixamos de versar durante todo este tempo.

Por enquanto, tenho rareado as minhas idas ao Pitinha. Quando a ida se torna inadiável, procuro alternar os caminhos e as horas de transitar. Faz tempo que não paro à beira da lagoa para sentir o vento que mais parece beijar a face dos transeuntes, enquanto brinca com as águas cristalinas, formando pequenas ondas que passeiam de um lado para outro. Também não me assento mais nos bancos da praça nas manhãs de domingo, quando a feirinha ainda dá os seus suspiros matinais.

Por estes dias, um compadre veio me falar dos bancos da praça, que davam um ar de modernidade ao lugar, enquanto a feirinha continuava com a sua tradicional cara de domingo interiorano, como deveriam ser todas as feirinhas, na visão do pobre homem. Eu não quisera render conversa e, antes que houvesse mais delongas, desculpei-me por algum mentiroso compromisso e fi-lo partir dali. Depois, lembrei-me do Arnaldo e deduzi todo o seu pensamento sobre os tais bancos.

Era comum que o meu amigo chegasse sempre cabisbaixo, segurando a mão da sua esposa. Ela vinha de cabeça erguida, caminhando sobre o quintal gramado como se desfilasse por uma passarela, os cabelos dançando de um lado a outro, enquanto os seios pareciam querer saltar de dentro da blusa e a saia querer subir pela cintura. Assentavam-se, ambos, à minha frente e, enquanto ela ajeitava-se, cruzando as pernas de um lado para outro, ele começava a falar sobre os vários assuntos de que ouvira na cidade.

A verdade é que eu sempre teimava em não concordar com o amigo, embora sempre soubesse, secretamente, que, em toda a sua simplicidade, ele sempre estivesse com a razão. A esposa não dizia nada, apenas sorria timidamente, com seus olhos de ressaca, enquanto eu vislumbrava toda a sua beleza ao lado daquele mísero sujeito. E ele falava sobre a falta de chuva, sobre os políticos, as politicagens e as politicalhas, até que chegássemos às pequenas coisas e às insignificâncias do lugar.

Certamente que o Arnaldo teria um parecer sobre os banquinhos, sobre o qual discorreria após pedir desculpas pela ousadia da palavra. Antes ainda, beberia mais uma talagada de cachaça, tiraria o pigarro da garganta, fumaria uma puxada do cigarro de palha e concluiria que “se fosse para modernizar que se modernizasse tudo”. O mais incrível do meu velho amigo é que com ele ou era oito ou oitenta. Talvez por isso nunca fora capaz de tomar qualquer decisão na vida, de dar qualquer opinião em meio às grandes autoridades, de seguir qualquer caminho por suas próprias pernas.

O Arnaldo era um sujeito inteligente, embora fosse rude e sempre trouxesse consigo um ar de inferioridade que, muitas vezes, não me causavam pena, mas, repulsa daquele homem. Eu gostava do amigo, embora às vezes tivesse raiva dele. Parece estranho, mas era um sentimento dúbio, que fazia com que eu esperasse a sua chegada, junto da sua esposa e as suas filosofias catrumanas.


Algumas vezes fui à casa do amigo, procurando por vestígios seus. Não tenho encontrado nada que valha a pena; mas também não tenho encontrado nada que comprove a sua morte. Por isso, tenho me precavido e andado menos pela cidade ou pelos matos. Prefiro ficar em casa com a sua minha esposa, tomando as minhas cachaças, fumando o meu roleiro, enquanto ela prepara o café da tarde, com broa e beiju. Mas as lembranças do amigo Arnaldo ainda teimam em ficar.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A POESIA DE DINGO



Os jornais do dia davam a mesma notícia, todos versavam sobre a votação contra o presidente. Na esquina, alguns homens, esquentando o sol da manhã, com toda a autoridade que o Jornal Nacional lhes dera, filosofavam sobre a situação do país. Um, mais exaltado, com o dedo em riste, falava que apenas o exército é quem resolveria o problema da nação.

Algumas mulheres tomavam café na porta da rua. Com um lenço encardido na cabeça, uma balançava a cabeça para outra e dizia, ainda com a cara amarrotada, um “Bom dia, vizinha”. A resposta vinha seguida por uma pergunta sobre a situação política e, logo, passavam-se às amenidades, enquanto o frio da madrugada dava lugar ao tímido sol matutino.

As varredeiras subiam a rua arrastando as vassouras de um lado a outro, jogando a terra que descia lá de cima para dentro dos buracos que formavam à beira do asfalto. Entre risos, uma vaticinava que “Um dia, alguém ainda cai dentro duma cratera dessas”. As outras riam olhando para o lado, para verem se o fiscal não estava chegando. Um homem passava de bicicleta e, balançando a cabeça, dava um rápido “Opa!” e seguia para o boteco. Precisava de um trago de pinga para começar o dia.

Algumas crianças desciam para a escola. As pesadas mochilas pareciam dançar em suas costas, enquanto elas conversavam sobre futebol, brincadeiras, namorados e vídeos do Youtube. O sino da igreja batia as sete badaladas e elas já deveriam estar no portão, ou dentro das salas de aula. Chegariam no segundo horário, não tinham pressa, nem vontade de estudar.

Alheio a tudo isso, Dingo descia, rapidamente a rua, com o sorriso estampado no rosto e toda a alegria que os sonhos lhe permitiam. Não guardava rancores ou desilusões; apenas parecia ter a certeza de que tudo não passava de mera poesia e, esfregando rapidamente as mãos, repetia aos sisudos transeuntes:


- Bora pra roça, bora pra roça, bora! 

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O FIM DO NOSSO FUTEBOL

Quando criança, eu sonhava em ser jogador de futebol. Aliás, a maioria das crianças de antigamente sonhava a mesma coisa. Lembro-me de que todas as tardes brincávamos de “Golzinho” na rua da minha casa, se não, íamos até o “campinho de Menon” ou “detrás do parque” para batermos a nossa bolinha. Era incrível como surgiam tantos meninos, de todos os cantos, alguns que nem mesmo conhecíamos. E jogávamos todos.

Nos sábados e domingos, se não estivéssemos no campo, ou jogando algum torneio em Inhaúma, eu ligava o rádio na Itatiaia e, enquanto o Willy Gonser ia narrando as partidas do Galo, corria de um lado a outro do quintal, fingindo ser o Gutenberg, o Doriva, quiçá o Taffarel. É estranho, mas, naquela época eu não queria ganhar dinheiro com futebol, nem ir para a Europa jogar no Barcelona ou no Real. Queria apenas jogar no Mineirão lotado e (Incrível!), jogando no gol, defender uma bola “indefensável”, colocá-la à frente, fintar o primeiro, o segundo, o terceiro, partir pela direita, ultrapassar o meio de campo, fintar o zagueiro duas vezes, dar um chapeuzinho no goleiro e, só por pirraça, fintá-lo outra vez e marcar o gol por entre as suas pernas.

Depois, já sabedor da minha incompetência futebolística, contrariando o amigo que queria ir ao CT do Atlético para que fizéssemos o Teste, resignei-me em fazer carreira amadora, sem qualquer prestígio e qualidade, no glorioso Real Madri corjesuense. Sem qualquer brilhantismo, uns três gols de pênalti e um contra, corria em todas as posições das quatro linhas, apenas não me aventurando debaixo dos três paus.
Por fim, pendurei a chuteira conhecendo um pouco da numerologia que rege o esporte bretão, com a certeza de que todo bom time começa por uma defesa sólida, passando por um meio de campo rápido, firme e com alguma habilidade, culminando em atacantes matadores. A harmonia, portanto, deve dar o tom do esquadrão, caso contrário, ter-se-á apenas um aglomerado de homens correndo de um lado a outro, cada um querendo resolver do seu jeito, sem estratégia ou previsão de sucesso, assim como vemos hoje no Alvinegro Mineiro.

Certamente, no ano que vem, o Galo volte aos bons tempos, com um melhor planejamento e jogadores de maior qualidade, sobretudo, com um verdadeiro espírito coletivo. Quanto ao velho sonho de ser futebolista, adormeceu nas tardes dos finais de semana em que eu corria atrás da bola no quintal, para dar lugar a um mero espectador, sem maiores pretensões ou qualquer rusga pelo desarranjo profissional dentro do tapete verde.

O que me impressionam, no entanto, são as proporções a que o futebol tem chegado. Quando criança, enquanto via Bebeto desfilando o seu talento no La Coruña, da Espanha, e, por isso, torcia para aquele time, nunca imaginava que tantas cifras estivessem por trás do espetáculo. Aliás, se comparado com os dias atuais, nem era tanto dinheiro assim. O dinheiro já movia os atletas, afinal, é sempre preciso buscar uma melhor condição de vida, sobretudo, no futebol, onde a maioria dos jogadores é oriunda de famílias com baixo poder aquisitivo, muitos vindos de favelas e comunidades extremamente pobres.

Lendo “O Tempo”, de BH, fiquei sabendo que os cerca de 820 milhões de Reais que o Paris Saint German, da França, pagou (pagaria, ou pagará?) para tirar o Neymar do Barcelona, da Espanha, daria para pagar um mês de salário aos servidores da Educação de Minas Gerais. E olha que não ganhamos tanto assim, pelo contrário. É muito dinheiro para um jogador, indiferente se  seja o Ney, o Messi, Cristiano ou o Tonico de Dona Florzinha; o futebol deveria ser apenas uma brincadeira, com noventa minutos de diversão .

Algum leitor mais atento haverá de indagar o fato de a transação ter ocorrido em solo europeu e, por isso, nada termos nós a ver com isso. Mas, o problema não é o dinheiro ganho por Neymar, nem o salário recebido pelos professores. O problema é a essência do futebol. Poucas são as crianças que sonham jogar em um grande clube brasileiro. Os nossos pequenos futebolistas já saem das fraudas com um grande empresário (geralmente o pai ou um irmão mais velho), sonhando jogar num dos grandes clubes da Europa, ganhando milhões, comprando iates, carros de luxo, mansões, sempre acompanhados de lindas mulheres.

Salvas raríssimas exceções, já não existe mais a paixão pelo clube. Não nas nossas crianças. Os aficionados pelos times de futebol brasileiros somos os pobres mortais que já nem sonhamos mais em jogar bola profissionalmente. Os atletas, preparados desde o berço para seguirem a carreira de Pelé, Tostão e Reinaldo, são seres desprovidos de paixão clubística. No máximo, têm alguma simpatia por um time nacional, o que não o impediria de vestir a camisa do seu principal adversário. O importante são os barões caindo na conta, os seguidores das redes sociais, as aparições televisivas nas quartas e domingos.

O futebol de outros tempos não existe. Nelson Rodrigues, o mestre de todos os cronistas esportivos, haveria de decretar a falência do nosso futebol. O que existe, nestes tempos robóticos, são atletas de laboratório, criados para serem jogadores, cheios de músculos, com toscos cortes de cabelo e um monte de palavras pré-estabelecidas, a serem ditas nas concorridas coletivas, onde os repórteres de sempre haverão de fazer as mesmas perguntas, sem conteúdo nem interesse. Enquanto isso, os torcedores ficam em casa, assentados no sofá, tomando cerveja e comendo seu tira-gosto, xingando o “professor pardal”, que não soube mexer no time; pedindo a cabeça do presidente, que montou mal o seu elenco. Nas arquibancadas, alheios ao futebol, alguns indivíduos acenam para as câmeras de TV, enquanto outros tiram selfies para as redes sociais e outros, menos socializados, matam-se com paus, pedras e cusparadas.