O CHAMADO
Parecia
estranho, mas, sem sombra de dúvidas, era muito bonita. Tratava-se de uma voz que ele nunca tinha ouvido e que o chamava
assim:
- Luís, Venha. Está na hora de irmos... – Não tinha a
mínima idéia do que se tratava. Ficava a cada dia mais assustado.
De noite, estava dormindo e a voz o acordava. Sempre com
aquele timbre gostoso de ouvir:
- Luís, venha. Está na hora de irmos. Primeiro, pensou
que era alguma brincadeira de mau gosto. Xingou, rogou pragas , ameaçou cortar
fora o saco daquele infeliz que não tinha o que fazer; depois se amedrontou,
não sabia quem era; apenas ouvia aquela voz que não cessava de chamá-lo. Não se
atrevia a responder àqueles chamados. Um dia, quando ainda era pequeno, a mãe o
havia dito que quando escutasse uma voz e não conhecesse o seu dono não deveria
respondê-la, pois poderia ser a morte que vinha buscá-lo. E agora? E se fosse a
própria dama de negro que viesse para levá-lo para os confins do além. Não.
Ainda que fosse algum desempregado apenas, não responderia àquele chamado.
Passou a ouvir calado àquela voz. Não respondia. Não
falava com ninguém sobre aqueles acontecimentos. Guardava todo o seu incômodo
para si mesmo. Evitara, agora, sair de casa, a não ser que fosse pra ir à
missa; fazia mais de vinte anos que não ouvia um sermão, não usava ir às
missas, era quase um ateu; ou, então, saía para algum caso inadiável.
Em casa, ouvia àquela voz durante todo o dia. Era como se
ela o perseguisse. Fosse à cozinha, à sala, quarto ou banheiro, lá estava ela
atrás dele a importuná-lo, querendo enlouquecê-lo, atrapalhando a sua vida.
Fazia mais de mês que não aparecia no serviço (era contador numa firma na
Pampulha, próximo a lagoa); o telefone tocava diariamente e ele não atendia; a
porta estava quase ao ponto de ser derrubada, os colegas procuravam-no o dia
inteiro, não atendia, tinha medo de abrir a porta. Tinha medo de que fosse ela
quem estivesse a bater. Por fim, fora despedido do emprego; recebera a
informação por carta, não teria coragem de abrir a porta para escutá-la.
O único lugar em que a voz não ousava importuná-lo era
dentro da igreja. Talvez ela respeitasse aquele ambiente sacro, ou quem sabe
fosse uma voz maléfica, daquelas a quem não é permitido entrar em ambientes
onde o bem prevaleça. Não se sabia o motivo, mas ali, de fato, ele sentia-se
protegido, assegurado por todas aquelas imagens que, mais do que isso, eram
representações do bem sobre a face da terra. Com o tempo, porém, a sua
liberdade dentro da igreja foi sendo cerceada; a voz começava a adentrar também
às portas da casa de Deus. Luís tinha medo daquela voz, mas, ao mesmo tempo,
sentia-se atraído por ela. Talvez ela o tivesse enfeitiçado. Resolveu, então,
procurar o padre e contá-lo sobre o que lhe estava acontecendo.
O padre não conseguira
resolver o seu problema, mesmo assim, deixou-o mais aliviado. Agora não
guardava para si somente aquele acontecimento sobrenatural; ainda que
superficialmente, tinha agora alguém com quem pudesse confessar, contar o que
sentia. O padre não parecia acreditar muito na sua história, mas tentava acalmá-lo,
punha-o para rezar dez Ave-Marias e dez Padre-nossos. Enquanto se ocupava nas
orações, não tinha tempo para escutar a voz incômoda. Por isso sentia-se
aliviado.
Agora não tinha mais descanso, escutava-a a todo o
momento. Estava quase enlouquecendo, não sabia mais o que fazer. Já não
adiantava rezar, xingar ou mesmo calar-se. Era sempre perseguido e aquilo o
transtornava. Pensava já em ceder; perguntar o que é, o que queria, por que o
atrasava daquela forma. Sentia-se nervoso; já não dormia à noite; não conseguia
viver uma vida normal; estava morto, preso em sua própria casa; não tinha mais amigos;
perdera a namorada, que já devia estar junto de outro, fazia mais de um mês que
não a procurava, não telefonava, não lhe mandava uma carta sequer. Suava a todo
o momento; sentia calafrios; estava ficando alucinado; tinha mania de doenças,
estava com medo de morrer. Estava na hora, tinha que procurar um psicólogo.
Somente um especialista poderia resolver o seu problema.
Foram várias seções com um médico gordo, meio doido, que
muito pouco resolvia o seu problema. Tentou-se uma regressão e nada;
tentaram-se alguns medicamentos, dopava-se com tanta droga que nem conhecia o
nome, nada. Talvez estivesse enlouquecido, devia ser um caso perdido. O
psicólogo desistiu. Disse que não sabia mais o que fazer, talvez tivesse mesmo
alguma alma penada a persegui-lo, ou poderia ser mesmo a dona morte que viesse
para buscá-lo. O médico era louco, de fato era um louco.
Viu-se de frente a um terreiro. Não pensou duas vezes,
entrou. Há tempo pensava em procurar um pai-de-santo, nunca havia acreditado
nessas coisas, mas agora não tinha mais jeito, fora obrigado a aceitar o fato,
tinha que recorrer àquele socorro. Era um lugar inóspito, muito sujo, com
porcos, cachorros e galinhas andando à solta por toda parte. Sentia-se enojado
de estar ali, mas era preciso.
- Chega mais, meu filho. - disse um homem negro com um
olhar branco, um trejeito de quem nunca foi parte de umbanda.
- Sarava. Cê ta com problema, logo se vê. Mais num há de
se preocupar, tudo são coisas futuras. Um dia, mais cedo ou mais tarde tudo há
de se resolver. - Não cria muito naquilo que o preto dizia, afinal, todos
deviam dizer a mesma coisa. Deixou que o homem lhe fizesse uma oração;
comprou-lhe uma garrafada de remédios do mato e foi-se embora, sem muita
convicção, mas um pouco mais aliviado.
Durante três dias Não ouviu mais a voz. No quarto dia,
porém, acordou no meio da noite. Estivera sonhando. Uma pessoa muito querida
vinha até o pé de sua cama e puxava-lhe o cobertor, sempre com aquela mesma
voz. Era uma voz severa, mas, ao mesmo tempo, era uma voz repleta de afeição.
Talvez a morte não fosse assim tão má como se diz por aí.
Nessa noite encheu-se de coragem. Não podia mais fugir,
deveria agir como homem que era; seja lá o que fosse tinha que enfrentar de
frente, sem medo, assumindo os riscos que a vida, ou seja lá o quer for, lhe
impunha. Não perguntou de supetão. Sentou-se na cama e, com as luzes apagadas,
ficou em silêncio escutando a voz que lhe falava sempre a mesma coisa.
-Luís, venha, está na hora de irmos... - Aquela voz não
lhe era estranha; pelo contrário, tratava-se de alguém muito conhecido, mas não
conseguia se lembrar, era incapaz de ligar aquela voz a qualquer pessoa.
Lembrou-se de todos os amigos falecidos; de todos os parentes que haviam
partido desta para melhor (ou pior?); não. Não era compatível com a voz de
nenhum conhecido morto. Passou então para os vivos. Primeiro os amigos. Nenhum
era possuidor daquela voz. Depois, as antigas namoradas; nada. Os parentes
distantes; os próximos; nem pensar. Estava quase desistindo, mas a voz não lhe
permitia. Ela parecia impacientar-se; talvez não conseguisse dizer nada além
daquelas palavras; talvez fosse alguma regra dos mortos. Tentou resistir, mas
não foi capaz:
- De quem é esta voz, pelo amor de Deus? Já estou ficando
louco... – A voz repetiu-se de forma transloucada, algo parecido com um eco que
pouco a pouco vai se afastando até desaparecer na escuridão do desconhecido.
Uma grande dor tomou conta do seu peito. Tentou gritar, mas faltou-lhe voz, não
teve forças para pedir por socorro. Caiu sobre uma cadeira de balanço, jogou os
braços por sobre o peito e adormeceu.
Fazia quarenta dias quando resolveram invadir a casa de
Luís. Os amigos que arrebentaram a porta nada encontraram no minúsculo
apartamento. Nenhum corpo, nenhuma mensagem, nenhuma gravação na secretária
eletrônica. Um amigo, ao sair daquele lugar, tratou logo de apagar a luz; ao
fechar a porta sentiu que uma mão lhe tocava o ombro; acendeu a luz novamente,
não havia ninguém ali. Apagou a luz novamente e se foi. Ainda na escadaria, uma
voz lhe falou:
-Ricardo, venha, está na hora de
irmos...