quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

CRÔNICA DE UMA DERROTA ANUNCIADA

Aparentemente, a direção atleticana estava repleta de boas intenções; mas, indubitavelmente, estava também tomada por incompetentes. Não tinha para onde correr; do jeito que as coisas andavam, o vexame dessa quarta-feira de cinzas era inevitável.


Assim como a maioria dos alvinegros, eu apoiei a chegada do Dudamel, pois era uma novidade, o renascimento da esperança de toda uma torcida. E, assim como a maioria, também aplaudo a saída do venezuelano, de Rui e Marques, o retrato de mais uma esperança frustrada.


Frente às tantas ações fracassadas, fica a dúvida se o presidente demitiu o técnico e a diretoria por convicção, ou se o fez devido às inúmeras pressões que vinham das redes sociais e, sobretudo, dos veículos de jornalismo esportivo. Mas isso não importa, o importante é que, pela enésima vez, renascem as esperanças alvinegras.

Que venha um novo diretor e, sobretudo, que chegue com planejamento, conhecimento sobre a história do Galo, com ousadia e responsabilidade. Em tempo, que se contrate um treinador que tenha a capacidade necessária para treinar um time de tamanho imensurável, com uma torcida extremamente apaixonada e que sempre acredita que irá vencer, vencer, vencer.

Fosse eu o presidente, iria imediatamente atrás do Cuca, um técnico experiente, conhecedor do espírito atleticano. Daria ordens explícitas para que fizesse à sua maneira, mas reconquistasse, com muita luta, o orgulho do torcedor alvinegro.

Não há dúvidas de que os jogadores têm grande parcela de culpa em cada vexame sofrido neste ainda início de ano; mas, convenhamos, temos um time decente, capaz de levar, novamente, o nome do Clube Atlético Mineiro aos píncaros do futebol. Afinal, quem não desejaria ter no seu time jogadores como Víctor, Igor Rabello, Gabriel, Arana, Mailton, Allan, Jair e Tardelli, além de vários outros bons nomes do futebol sulamericano?! 

Fatidicamente, ainda em fevereiro, o ano do atleticano vai chegando ao fim.  O Brasileiro é um sonho distante, quase impossível, frente ao poderio do Flamengo, Palmeiras e Grêmio.


Assim, resta planejar e, sobretudo, colocar os planos em prática, visando a classificação à Libertadores e, com muita competência, a conquista da América em 2021. E que o Mineiro seja a preparação mais adequada para  um Brasileirão de redenção. E tenho dito!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

VÍCTOR ANUNCIA APOSENTADORIA

Falando sobre sonhos, foi um outro leitor quem me veio com esta nota. Disse que nem sempre eles vêm com algum significado, mas que, às vezes, servem para nos deixar sarapantados.

De acordo com o atleticano, durante o período de Carnaval, tem sofrido demasiadamente com a abstinência dos jogos do Galo, não se contentando em ouvir e ler as notícias alvinegras nas redes sociais e nos vários programas matutinos, vespertinos e noturnos.

Foi numa dessas, depois de um dia cheio de notícias atleticanas, com rumores sobre a saída do Patric e a chegada do Rafael, que ele teve, segundo o próprio, o seu pior pesadelo.

Era a manhã do jogo contra o Afogados, com o Galo já em Pernambuco. Ele, ainda com ressaca do Carnaval, rolava de um lado para outro na cama sem vontade de se levantar. O celular estava ligado num programa de esportes e o sol já entrava forte pelas frestas da janela.

A notícia veio seca, trazendo uma golfada de alegria: "Galo acerta com o Sport e Patric fica em Pernambuco". Já ia soltar o grito, como se o Alvinegro tivesse marcado um gol em final de Libertadores; mas eis que lhe veio a fatídica notícia: "Com a iminente chegada de Rafael, Victor rescinde seu contrato e anuncia aposentadoria". 

Por respeito a você, caro leitor, não repetirei as palavras proferidas pelo onírico torcedor, que, depois de desabafar toda a sua ira contra o pobre apresentador, tentou levantar-se subitamente para tomar um banho frio; mas como ainda estivesse dormindo, rolou pela cama dando com a cara no chão.

ONIROLOGIA

Há sonhos que nem mesmo a  onirologia é capaz de explicar. E isso se dá pelo fato de que às vezes a nossa mente teima em dar voltas que dificilmente se há de entender.

Em tempos de internet, o melhor é recorrer ao Google na, quase sempre vã, tentativa de esclarecer, ainda que minimamente, àquelas oníricas situações que nos fundem a sapiência.

A verdade é que, em meio a tantos tópicos sobre sonhos, sobre a vida, sobre a morte e o dinheiro, dificilmente se explicará, por exemplo, um sonho em que me vejo pedalando uma motocicleta com toda a família na garupa, caindo subitamente em uma caixa d'água cheia de pequenos peixes, e que a ferramenta tecnológica afirma, simplesmente, resumir-se a um futuro próximo cheio de realizações e, quem sabe, mais um herdeiro na família.

Ainda debatendo sobre os sonhos e suas implicações, foi uma leitora quem me disse que eles se realizam e ela pode provar, afirmando, em tempo, que já está a espera das consequências do seu mais novo sonho: um casamento árabe, onde ela se vestia toda de vermelho em meio a uma incontável quantidade de ouro e uma multidão de súditos e simpatizantes.

Embora sem muita convicção, mas com a curiosidade própria de um cronista, contei o sonho ao Google, na esperança de uma resposta plausível. Com palavras doces e esperançosas, disse-me o oráculo que, num futuro bem próximo, a minha sonhadora leitora receberá boas notícias, trazendo-lhe paz e prosperidade. E que, talvez, até eu ganhe algum regalo pela minha intermediação na sua tão onírica causa.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

DESAMOR

Aproveitando a segunda-feira de Carnaval com o sol ainda ressacado, resolvi levar meu filho para uma volta à beira da lagoa. Armei-o de uma pequena bicicleta, ainda com rodinhas de sustentação, e fui a pé, resfolegante ao seu lado, graças à minha rechonchuda forma física.

Pela descida, ele foi controlando a velocidade com pequenos apertões na manete de freio, talvez vislumbrando a dificuldade do velho em acompanhá-lo. E com o pretexto de pequenas tomadas de fôlego, fui descansando enquanto tirava  algumas fotos, eternizando a lagoa com seus rasgos solares, o menino pedalando livre feito passarinho, o palco com as suas parafernalhas, sem ninguém para tocá-las àquela hora.

Antes de voltarmos, ainda sentamos junto aos degraus do espelho d'água e, enquanto eu respondia às várias perguntas do pequeno ciclista, escutava, ao longe, a conversa de algumas mulheres que limpavam as incontáveis sujeiras deixadas pelos foliões durante a noite.

Uma reclamava do trabalho que algumas não faziam, ameaçando reportar ao responsável, sendo imediatamente apoiada pelas colegas não menos revoltadas. Noutro canto, duas mocinhas entretinham-se em falar da noite festiva, enquanto puxavam a água suja do banheiro; até que uma perguntou:

- Amiga, você já desamou alguém?

Está claro que este verbo não é um neologismo criado pela mocinha desapaixonada; mas, convenhamos, apesar de toda a dor que a mesma devia estar sentindo em meio a este sentimento tão vazio e resoluto, é esta, verdadeiramente, uma palavra bonita, assim como são mesmo as palavras mais desgostosas da nossa língua.

Não tive tempo de ouvir a resposta da sua interlocutora, pois, ávido para mais uma pedalada, o meu pequeno ciclista já ia por uma distância considerável em desabalada carreira, obrigando-me, para desespero das minhas vias aéreas, a correr feito louco na sua cola. E, enquanto eu ouvia o barulho da garrafa que coloquei entre a roda e o garfo traseiro, e ele dizia ser o ronco de uma moto, ia pensando com meus botões no tanto que a cada dia amamos e desamamos tanta gente nessa vida.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

AS SATURNAIS E O NOSSO CARNAVAL


Assim como já devem ter feito vários leitores, por mera curiosidade, resolvi, já às portas do Carnaval, pesquisar a origem desta tão decantada festa. Em outros tempos, desnudo dos inúmeros meios tecnológicos que atualmente nos empanturram com uma imensidão de informações, às vezes úteis, mas quase sempre sem qualquer importância, recorreria às, já relegadas ao ostracismo da última prateleira da biblioteca, pré-históricas Enciclopédias Barsa.

Conforme esperado, não foram necessárias grandes buscas até encontrar as informações pretendidas. Sem precisar procurar por minúsculos tópicos nas páginas amareladas dos grossos livros de capa vermelha, vislumbrei no primeiro link encontrado (da revista Super Interessante) as informações pretendidas. Ei-las:

. Ao contrário do que muitos pensam, o Carnaval, assim como o futebol, não é uma ideia brasileira; já sendo encontradas festividades parecidas às atuais na Roma Antiga, quando os cidadãos romanos, em exaltação a Saturno, o deus da agricultura, realizavam as “Saturnais”.

. Diferente dos Carnavais atuais, as Saturnais aconteciam em dezembro; também contando com animados bloquinhos. As festas duravam uma semana, com todo mundo de folga e, assim como hoje, eram extremamente comuns as orgias e bebedeiras durante as festividades.

.Também eram comuns as participações de mulheres e homens nus desfilando em carros alegóricos, que se chamavam “Carrus Navallis”, por ter o formato semelhante aos navios. Daí, talvez, o nome dado às festas atuais. Em tempo, a revista afirma que a expressão acabaria por ser “ressignificada” durante a Idade Média, passando à nomenclatura “Carne Vale” (Adeus à Carne) e mudando a sua realização para os últimos dias antes da Quaresma.

A revista ainda traz diversas outras informações úteis aos curiosos de plantão; no entanto, ficou-me na cabeça a tentativa de imaginar os carnavais daquele tempo, faltando-me talvez a sapiência necessária para responder algumas perguntas que, creio eu, ninguém haveria de perguntar; tais como: quais seriam os grandes hits das Saturnais? Quem vendia os abadás? Quais foram os Reis Momos mais famosos daquela época?

Creio que estas, assim como diversas outras inutilidades, são perguntas que nunca haverão de ser respondidas; nada que afete o andamento das nossas festas; nada que intimide os nossos descolados foliões; afinal, o que importa é cair na folia, sem se esquecer de que na quarta-feira de cinzas talvez tudo volte ao normal.  

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O AVISO



Parecia estranho, mas, de fato, era muito bonito. Tratava-se de uma voz que ele nunca tinha ouvido e que o chamava assim:
            - Luís, Venha. Está na hora de irmos... – Não tinha a mínima ideia do que se tratava. Ficava a cada dia mais assustado.
            De noite, estava dormindo e a voz o acordava. Sempre com aquele timbre gostoso de se ouvir:
            - Luís, venha. Está na hora de irmos.
De início, pensou que era alguma brincadeira de mau gosto. Xingou, rogou pragas, ameaçou cortar fora o saco daquele infeliz que não tinha o que fazer; depois se amedrontou, não sabia quem era; apenas ouvia aquela voz que não cessava em chamá-lo.
Não se atrevia a responder aos chamados. Um dia, quando ainda era pequeno, a mãe o havia dito que quando escutasse uma voz e não reconhecesse o seu dono, não deveria respondê-la, pois poderia ser a morte que vinha buscá-lo. E agora? E se fosse a própria dama de negro que viesse para levá-lo para os confins do além? Não. Ainda que fosse algum desempregado apenas, não responderia ao chamado.
            Passou a ouvir calado aquela voz. Não respondia. Não falava com ninguém sobre aqueles acontecimentos. Guardava todo o seu incômodo para si. Evitava, agora, até mesmo sair de casa, a não ser que fosse pra ir à missa; fazia mais de vinte anos que não ouvia um sermão, não usava ir às missas, era quase um ateu, ou para algum caso inadiável.
            Em casa, ouvia aquela voz durante todo o dia. Era como se ela o perseguisse. Fosse na cozinha, na sala, quarto ou banheiro, lá estava ela a importuná-lo, querendo enlouquecê-lo, atrapalhando a sua vida. Fazia mais de mês que não aparecia no serviço; o telefone tocava diariamente e ele não atendia; a porta estava quase ao ponto de ser derrubada, os colegas procuravam-no o dia inteiro e ele não os atendia, tinha medo de abrir a porta; tinha medo de que fosse ela quem batesse. Por fim, acabou sendo despedido; recebeu a informação por uma carta que empurraram por debaixo da porta, e quase não tivera coragem de abri-la para a leitura.
            O único lugar em que a voz não ousava importuná-lo era dentro da igreja. Talvez ela respeitasse aquele ambiente sacro, ou quem sabe fosse uma voz maléfica, daquelas a quem não é permitido entrar em ambientes onde o bem prevaleça. Não se sabia o motivo, mas ali, de fato, ele sentia-se protegido, assegurado por todas aquelas esculturas que, mais do que isso, eram representações do bem sobre a face da terra.
Com o tempo, porém, a sua liberdade dentro da igreja foi sendo cerceada; a voz começava a adentrar também as portas da casa de Deus. Luís tinha medo daquela voz, mas, ao mesmo tempo, sentia-se atraído por ela, como se estivesse enfeitiçado. Resolveu, então, procurar o padre e contá-lo o que estava acontecendo.
            O padre não conseguira resolver o seu problema, mesmo assim, deixou-o mais aliviado. Agora não guardava somente para si aquele acontecimento sobrenatural; ainda que superficialmente, tinha agora alguém com quem pudesse se confessar, contar o que sentia. O padre não parecia acreditar muito na sua história, mas tentava acalmá-lo, colocando-o para rezar dez Ave-Marias e dez Pai-nossos. Enquanto se ocupava nas orações, não tinha tempo para escutar a voz incômoda e, assim, sentia-se aliviado.
            Agora não tinha mais descanso, escutava-a a todo momento. Estava quase enlouquecendo, já não sabia mais o que fazer. Não adiantavam as rezas nem os xingamentos. Era sempre perseguido e aquilo o transtornava. Pensava já em ceder; perguntar o que era, o que queria, por que o atrasava daquela forma.
Luís sentia-se nervoso e já não dormia à noite; não conseguia viver uma vida normal; era como se estivesse morto, preso em sua própria casa; não tinha mais amigos; perdera a namorada, que já devia está junto de outro, pois fazia mais de um mês que não o procurava, não telefonava, não lhe mandava uma carta sequer. Ele suava a todo momento; sentia calafrios; estava ficando alucinado; tinha mania de doenças, estava com medo de morrer. Estava na hora, tinha que procurar um psicólogo. Somente um especialista poderia resolver o seu problema.
            Foram várias as seções com um médico gordo, meio doido,  e que em quase nada resolvia o seu problema. Tentou-se uma regressão e nada; tentaram-se alguns medicamentos; dopava-se com tanta droga que às vezes nem sabia mais seu próprio nome; nada.
 Pensava que talvez estivesse enlouquecido e já devia ser um caso perdido. O psicólogo, por fim, desistiu. Disse que não sabia mais o que fazer,  que talvez tivesse mesmo alguma alma penada a persegui-lo, ou poderia ser mesmo a dona morte que viesse buscá-lo. O médico era louco, de fato era um louco.
            Viu-se de frente a um terreiro. Não pensou duas vezes, entrou. Há tempos pensava em procurar um pai-de-santo; nunca havia acreditado nessas coisas, mas agora não tinha mais jeito, fora obrigado a aceitar o fato, tinha que recorrer àquele socorro. Era um lugar inóspito, sujo, com porcos, cachorros e galinhas andando à solta por toda parte. Sentia-se enojado de estar ali, mas era preciso.
            - Chega mais, meu filho. - disse um homem negro com um olhar branco, um trejeito de quem nunca foi parte de umbanda.
            - Saravá. Cê ta com pobrema, logo se vê. Mais num há de se preocupar, tudo são coisas futuras. Um dia, mais cedo ou mais tarde tudo há de se resolver. -  Ele não cria muito naquilo que o preto dizia, afinal, todos deviam dizer a mesma coisa. Deixou que o homem lhe fizesse uma oração; comprou-lhe uma garrafada e foi embora, sem muita convicção, mas um pouco mais aliviado.
            Durante três dias Não ouviu mais a voz. No quarto dia, porém, acordou no meio da noite. Tivera um sonho estranho: Uma pessoa vinha  ao pé da cama e puxava-lhe o cobertor, sempre com aquela mesma voz. Era uma voz severa, mas, ao mesmo tempo, repleta de afeição. Talvez a morte não fosse assim tão má como dizem por aí!
            Nessa noite encheu-se de coragem. Não podia mais fugir, Era preciso agir como homem; Fosse o que fosse tinha que enfrentar de frente, sem medo, assumindo os riscos que a vida, ou seja lá o quer for, lhe impusesse.
Não perguntou de supetão. Sentou-se na cama e, com as luzes ainda apagadas, ficou em silêncio, escutando a voz que lhe falava sempre a mesma coisa.
            -Luís, venha, está na hora de irmos... - Aquela voz não lhe era estranha; pelo contrário, parecia ser de algum conhecido, de quem ele não conseguia se lembrar; era incapaz de ligar aquela voz a qualquer pessoa.
Tentou lembrar-se de todos os seus amigos falecidos; de todos os parentes que haviam partido desta para melhor (ou pior?); não. Não era compatível com a voz de nenhum conhecido morto. Passou então para os vivos. Primeiro os amigos. Nenhum era o dono daquela voz. Depois, as antigas namoradas; nada. Os parentes distantes; os próximos; Nenhuma solução. Estava quase desistindo, mas a voz não lhe permitia. Ela parecia impacientar-se; talvez não conseguisse dizer nada além daquelas palavras; talvez fosse alguma regra dos mortos.
Luís tentou  resistir, mas não foi capaz:
            - De quem é esta voz, pelo amor de Deus? Já estou ficando louco... – A voz repetiu-se de forma transloucada, algo parecido com um eco que pouco a pouco vai se afastando até desaparecer na escuridão do desconhecido.
Uma grande dor tomou o seu peito. Tentou gritar, mas faltou-lhe a voz, não teve forças para pedir por socorro. Caiu sobre uma cadeira de balanço, jogou os braços por sobre o peito e morreu.
            Fazia quarenta dias quando resolveram invadir a casa de Luís. Os amigos que arrebentaram a porta nada encontraram no minúsculo apartamento. Nenhum corpo, nenhuma carta, nem qualquer gravação na secretária eletrônica.
Um amigo, ao sair daquele lugar, tratou logo de apagar a luz; ao fechar a porta, sentiu que uma mão lhe tocava o ombro; acendeu a luz novamente, mas não havia ninguém ali. Apagou a luz e saiu. Ainda na escadaria, uma voz lhe falou:
            -Ricardo, venha, está na hora de irmos...

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

LEMBRANÇAS


Mal Willian dera o boa noite, ele desligou a televisão. Não estava com sono, mas, desde os tempos da roça, tinha o costume de dormir mais ou menos àquela hora. Quando criança não conhecia televisão e, em casa, dormia enquanto o pai ouvia as conversas de Carlos Alberto com os ouvintes da Nacional.

Agora, já velho, não tinha rádio nem aprendera a manusear o celular e, como trabalhasse todo o dia, dormia cedo para acordar ainda de madrugada.  Tinha saído de casa ao completar a maioridade, para servir o exército, e, depois de um ano de soldo, resolveu que o melhor seria mesmo ficar na capital, onde teria maiores chances de ser alguém e um dia poder buscar os pais para junto de si.

Desta vez o sono não veio e ele pôs-se a relembrar os tempos na velha casa. O que teria acontecido com os pais, será se estavam vivos e, se ainda existissem, reconheceriam-no? Dizem que as mães reconhecem os filhos pelo cheiro; mas será que ele ainda tinha o cheiro daquele tempo? A verdade é que mal se lembrava das suas feições; além disso, os pais já deviam estar bem diferentes.

O peito apertava à medida que as lembranças iam se aflorando e uma enorme tristeza doía frente ao esquecimento dos velhos. Sentiu um vazio tomar conta da sua alma, sem saber o que fazer. Queria uma esposa para chorar nos ombros, mas a única mulher a quem tinha amado havia fugido numa noite sem estrelas, na garupa de uma moto, enquanto ele voltava da obra onde trabalhava. Talvez por isso não tivesse lágrimas para chorar, pois tinha gasto todas naquela noite.

Através das frestas da cortina, luzes adentravam o quarto, enquanto os carros buzinavam lá fora. Na roça os barulhos eram diferentes e, enquanto Carlos Alberto conversava com seus ouvintes, os cachorros latiam as raposas que corriam pelo mato, enquanto as galinhas se esgoelavam no terreiro; alguns sapos coaxavam na beira da barragem e uma Coã cantava seus maus agouros nalgum pau ali por perto. A mãe se benzia: Valha, minha Nossa Senhora!, enquanto ele sorria já quase adormecendo.

A voz que chegava aos seus ouvidos não era a voz da mãe. Era uma voz estridente, metalizada, como a voz que o encarregado escutava na obra, sempre cobrando prazos e cuidados. A voz da mãe era macia e apascentadora, embora ele não se lembrasse do seu timbre, mas somente das sensações que sempre lhe causava. Era diferente do pai. A voz do velho era forte e sempre exigia respeito; um respeito que se aproximava de um medo bom e carinhoso.

O sono não chegava e o peito apertava cada vez mais. Ele queria se levantar e caminhar pelas ruas; talvez parasse nalgum boteco e pedisse uma pinga para se acalmar. Não tinha forças e, talvez, nem mesmo vontade tivesse de fato. Queria mesmo era não ter saído da roça, não ter ido para o exército, não ter conhecido mulher alguma; ter ficado junto dos pais.

Um turbilhão de pensamentos se emaranhava na sua cabeça. O barulho dos carros na rua penetravam os seus ouvidos e as luzes que entravam pelas frestas da cortina agora batiam de encontro aos seus olhos. Uma névoa estranha formou-se à sua frente e, de repente, todo o barulho cessou. Uma voz macia acalentou o seu peito, enquanto uma mão pesada lhe tocava o ombro. Ele se levantou quase flutuando e, segurando nas mãos dos velhos, como quando era criança, saiu pela porta da rua.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

CHICO, O HERÓI DO DIA-A-DIA


Na tarde desse domingo, Chico, de acordo com o jornal, sem camisa e sem chinelos, pulou no ribeirão Arrudas para salvar  um homem de dentro de um carro. Talvez a vítima estivesse embriagada; quiçá tivesse brigado com a esposa e, disposto a acabar com todo o seu sofrimento, sem nem pensar nas dores que causaria aos que ficavam, haja vista que devia ter filhos e talvez a esposa ainda o amasse, jogara o carro contra o curso d’água que corta a capital. Mas isso não importa: Chico o salvou.

O motorista do carro continuará vivendo a sua vida e pode ser que a esposa o aceite novamente; pode ser que pare de beber; e, talvez, quem sabe, nem tenha sido esse o motivo do acidente. Ainda assim, ficará o dito pelo não dito, com cada leitor criando a sua própria versão, dando as muitas causas e todas as continuidades desse fato insólito. Mas, nada disso importa, afinal, Chico o salvou.

Chico (Chicão para os amigos; Chiquinho para os irmãos; Alexandro para os clientes que compram suas colchas, seus cobertores e algumas almofadas) certamente não ganhará qualquer medalha pelo seu ato heroico, assim como não virará nome de alguma rua do bairro onde mora e nem ao menos ganhará uma pomposa gratificação da vítima pela qual se jogara nas poluídas águas do Arrudas. Mas, isso não importa.

Chico haverá de continuar acordando todos os dias de madrugada para trabalhar e ao chegar em casa ficará feliz ao receber o beijo da esposa e o carinho dos filhos; não deixará subir pela cabeça a fama que terá ganho no Salgado Filho, assim como em todo o oeste de BH; e continuará ajudando os amigos nos mutirões de final de semana, subindo escadas com baldes de concreto, assim como assará, ainda, muita batata nas noites belo-horizontinas, nas fogueiras que, decerto, ainda faz com os filhos no quintal de sua casa. Mas, isso não importa.

O motorista do carro foi levado até o posto de saúde e deve estar agora em casa, descansando, pensando em todo o prejuízo que tomara, afinal, perdera o seu carro e, talvez, até mesmo dinheiro, celular e algum outro bem que estava dentro do veículo. Talvez Chico esteja trabalhando, com todas as suas dores e os seus hematomas, afinal, hoje é segunda-feira e a vida tem que continuar. Mas isso não importa, pois Alexandro Francisco continuará sendo o mesmo herói de sempre.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

MEU ÓCIO CRIATIVO

Existem coisas contra às quais não dá pra lutar. Ainda que não me lembre de onde tenha ouvido esta expressão, tenho a certeza de que a mesma não me pertence e, por isso, peço a sua permissão, caro leitor, para usá- la nesta humilíssima crônica.

Não haverei de falar da morte: inesperada amiga que nos chega, às vezes, no momento mais inoportuno, noutras servindo-nos o descanso eterno. Também não falarei do amor: sentimento controverso, a caminhar de mãos dadas com a morte, trazendo-nos, em um só balaio, a alegria e a tristeza; o êxtase e a dor.

Falarei, sem grandes pretensões, sobre o intangível vazio criativo e suas eternas incongruências. Desde já, discordando dos grandes mestres que, solenemente, afirmam ser o processo de criação um profundo padecimento, em que as gotas de suor suprimem a falta de inspiração.

Talvez este meu pensamento até, de certa forma, desrespeitoso aos cânones, dê-se pelo fato de que eu não me encaixe em nenhum gênero ou estilo específicos, escrevendo de acordo com as direções apontadas pelos ventos da inspiração; daí, de época em época, velejar-me pelos mares da Poesia, do Romance, dos Contos ou das Crônicas, sem que em nenhum destes o faça de forma magistral, sempre como uma marinheiro de primeira viagem, cheio de coisas óbvias por aprender.

Talvez por isso também, fico tanto tempo sem escrever, falto de qualquer inspiração, cheio de dúvidas e impossibilitado de organizar quaisquer das mínimas palavras que perambulam por minha mente. Nestes momentos, aproveito-me do ócio criativo e ponho-me a viver, visto que, em breve, tudo não passará de uma intensa fantasia.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O MESTRE DO ESQUECIMENTO


Talvez algum cronista mais gabaritado já tenha dito que esquecer é uma arte. Pois então eu afirmo que nesta arte eu me dou de mestre. Aqui no Pitinha, apesar de toda a simplicidade vigente, não somos muito afeitos às falsas modéstias, sobretudo ao se tratar de coisas de tamanha monta. E ainda, se bem procurar, sempre se há de encontrar algum mais encorajado que confirme tudo o que este ou aquele diz, tendo isso sido visto ou apenas ouvido.

Minha carreira de esquecido remonta aos longínquos tempos da infância, pois, convenhamos, assim como os craques das quatro linhas, nenhum mestre se forma da noite para o dia, sendo necessários alguns bons anos de treinamento e, sobretudo, de pequeno esquecimentos. Ainda assim, não se precisou de mestres ou cartilhas e tudo se deu pelos simples caminhos da natureza.

Como toda criança esquecida, caminhei muitas vezes pela rua, cabisbaixo, repetindo em sussurros os pedidos de minha mãe: dois quilos de quiabo, um pacotinho de ki-suco de uva e três cebolas; dois quilos de quiabo, um pacotinho de ki-suco e três cebolas, dois quilos de quiabo, um ki-suco e três cebola; dois quilos de quiabo, um kissuqui e... 

Seu Estanísio era quem sempre guardava a minha bicicleta – uma velha Monareta vermelha – quando eu a esquecia na porta do armazém; até que um dia também ele esqueceu. A pobre magrela passou toda a tarde e a noite deitada solitária na beira da calçada, até que no outro dia, já quase na hora do almoço, depois de tanto procurar, levei-a para casa.

Os  esquecimentos têm piorado sempre mais e, por isso, já não carrego guarda-chuvas ou bonés. Estes ficam pendurados em pregos logo acima da velha sapateira, enquanto aqueles já não tenho mais em casa, pois andam todos perdidos por aí.

Talvez já nos derradeiros estágios do esquecimento, pouco tenho me lembrado das velhas desavenças, das tristezas sofridas, dos sonhos não realizados e, para não esquecer os compromissos marcados e as promessas a serem cumpridas, acabei por comprar uma agenda, um belo calhamaço de capa negra trabalhada. É uma pena que sempre me esqueço de usá-la.