quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

UM DIA ESPECIAL


UM DIA ESPECIAL


PARA A AMIGA @KILDACHELONI


Vocês repararam como ontem, terça-feira, estava quente. Em pleno mês de Fevereiro e um calorão daqueles. Meu Deus!... Não; o Arnaldo não apareceu e a mulher dele continua em minha casa. Estamos bem, aliás, muito bem. Mas isso é assunto para uma outra Crônica, em algum outro momento.
Ontem, também, a nossa seleção futebolística jogou. Não assisti; estava trabalhando. Mas, quem assistiu, disse que ela nem entrou em campo e que aquilo parecia mais uma pelada de fim-de-ano entre solteiros e casados. Os brasileiros eram os segundos... Mas não falemos de nossa seleção; pelo menos agora. Deixemos para o momento oportuno.
Não; ainda não os vi, nem os conheço. Conversamos pela internet, pelo Twitter. Sim; tornei-me twitteiro, no meio dos gerais, debaixo deste sol sempre Agostino, nos entremeios destes matagais e sertões; modernizei-me. Conheço-os pouco: Renato, Léo, Ricci e Kilda. Aliás, esta, ontem aniversariava.
Fizemos churrasco, tomamos cerveja, cantamos parabéns, aniversariamos. Os quatro bebemos até que a lua, cheia como sempre, se escondesse por detrás da Serra do Curral. Enquanto a lua se escondia, ainda me lembro, cantávamos serenatas e músicas de antigamente; comíamos mingau de milho verde, broa e rapadura, enquanto tomávamos todo o sereno que caía dos céus.
Fazia calor e não sentíamos. Estávamos felizes demais para senti-lo; sentíamos o calor da alma, da amizade, sentíamos o calor abafado, ainda que não nos conhecêssemos e não nos encontrássemos. Contávamos piadas e zoávamos a vida, a morte, os sonhos, os choros, as almas. Zoávamos os tempos, ambos, o que vinha e o que passava.
O sol começava a nascer no horizonte. Cantamos, então, o PARABÉNS PRA VOCÊ. E o sorriso brotou do âmago de cada um e fomos desaparecendo, sumindo, desencantando, até que sobrasse somente um fio de luz e a internet que pingava no ventre da mãe natureza; no azul de nossos olhos e, ao longe, sem precisar do menor esforço, uma última frase sobressaía:

PARABÉNS PRA VOCÊ!!!!

São os votos deste poeta e de todos os amigos a Kilda Cheloni!

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O EMBRULHO E A VIDA

O EMBRULHO E A VIDA


     Entrou rapidamente e, sob os olhares curiosos dos presentes, sentou-se numa mesa aos fundos, bem junto à velha parede de adobe. Um homem baixo, gordo, com o rosto abatido veio atendê-lo. Não fez qualquer consideração, mas notara que o indivíduo que acabara de entrar estava bastante estranho, ofegante, temeroso até.
     Enquanto esperava, pôs-se a observar um embrulho, o qual trouxera debaixo do casaco e, agora, pusera a mostra, sobre a mesa, sem se importar que os outros o visse. Olhava fixamente o embrulho, como se dentro estivesse algo maravilhoso, perigoso, a solução para todos os seus problemas. Depois, passou a observar os outros clientes: uma mulher gorda que comia muito e tinha o queixo e papada tomada por pelos, acompanhada por um homenzinho careca, muito pequeno, com cara de ganancioso; uma velha, cheia de rugas e pés-de-galinha que vestia um vestido caro e pintava os cabelos de acaju com um rapazinho forte, malhado e com espinhas pelo rosto. Pensou que fossem mãe e filho e se alegrava, até que ambos trocassem um beijo apaixonado. Em outra mesa, um grupo de jovens, meninos e meninas, que bebia e fumava sem qualquer pudor enquanto falavam palavras feias e contavam piadas indecentes.
     O restaurante estava cheio; além daqueles estavam outros, cada um com seus defeitos, suas pitadas de anomalias para desandar o mundo. Ele sentia a ira aumentar em seu peito; tinha vontade de levantar-se, subir na cadeira e, como nos tempos de engajamento estudantil, discursar suas palavras de ordem contra este mundo putrefeito. Não; não faria isso. Controlou a sua raiva e voltou a fitar o seu embrulho. Estava indignado com o mundo, as pessoas, com todo o sistema implantado pelo capitalismo e seus anjos do mal. Tinha sede de vingança.
     Enquanto tomava o café, com o embrulho ao alcance de suas mãos, refletia sobre tudo o que fizera em sua vida até aquele ponto: nada de mais. Nascera e crescera em uma família rica. O pai trabalhava de manhã até à tarde e à noite punha-se a assistir aos noticiários e suas notícias manipuladas. A mãe ficava em casa, sempre ao telefone com as amigas ou na cama com um dos empregados. Para compensar a sua solidão, ganhava brinquedos, brinquedos, brinquedos. Adolescente, saiu de casa. Foi morar numa república cheia de jovens maliciosos, drogados, ladrões. Enturmou-se, conheceu os prazeres e os castigos do mundo. Estudava, mas não concordava com o sistema; ingressou nos movimentos estudantis; foi preso; torturado. Saído da prisão, apaixonou-se por uma menina linda; não fora correspondido; pensou em suicídio; não teve coragem.
     Agora, acordara com raiva de tudo e de todos. Tinha vinte anos e uma vida inteira pela frente. Uma vida de desgostos e desenganos; uma vida de sofrimento e padecimento. Deveria acabar com isso. Começaria por aquele restaurante. Nada em particular, apenas um ponto de partida. Chamou o garçom; pagou o café; não agradeceu nem deu gorjeta. Saiu lentamente pela porta, sem olhar para trás, com uma sensação de alívio, sem felicidade, mas quase de prazer.
     Seguiu andando até o final da rua e desapareceu. O céu estava cinzento e o sol começava a aparecer por trás de uma nuvem pesada que era levada com dificuldade por um vento fraco. Sobre a mesa ficara o embrulho deixado pelo rapaz. Ninguém notou aquele pacote, ninguém veio buscá-lo. Talvez fosse uma bomba; um presente de um homem apaixonado; quiçá uma vida guardada para um outro momento, uma outra ocasião.
      No final do dia, a faxineira encontrou o embrulho ainda sobre a mesa; parou, olhou, prestou atenção. Melhor não abrir, podia ser algum trabalho de macumba, coisa do demônio. Colocou a pá sobre a mesa e com a vassoura empurrou o embrulho. Depositou-o no lixo, sem saber que em algum lugar da cidade um rapaz triste e com a alma cheia de ir ria, ria descontroladamente, tomado pela droga e pela desilusão.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A MULHER, O CARNAVAL E A LUA


A MULHER, O CARNAVAL E A LUA



Descia a rua sempre vestida de preto, com um lenço na cabeça e um sapato de salto. Não cumprimentava os vizinhos, não olhava para os lados ao menos; andava alheia a tudo, como se estivesse hipnotizada por alguma porção misteriosa. Os vizinhos já haviam se acostumado, porque todos os carnavais eram iguais: ela saía na sexta à noite e retornava apenas na quarta-feira de cinzas.
Não é que não ficassem curiosos sobre o seu paradeiro, até faziam apostas, tentavam descobrir o que fazia aquela mulher. Alguns diziam que era tarada por carnaval e, por isso, nestes dias embrenhava-se no meio de algum cordão e transformava-se, virava uma linda e jovem ninfa. Ela não era de todo velha, tinha sua meia idade, era viúva e não tinha filhos; não era bonita, sem, contudo, ser feia. Outros diziam que era “filha da lua” e que, por um castigo dos deuses, enlouquecia durante a festa da carne e escondia-se no meio de mato, onde ficava comendo folhas e pequenos insetos.
Outros tantos eram os seus paradeiros, coisas inventadas, fantasias dos desocupados. O certo é que descia na noite de sexta e desaparecia, toda vestida de preto voltando somente na quarta de cinzas ao amanhecer. Confesso a minha curiosidade. Queria segui-la, ver aonde ia. Não o fazia; preferia ficar no meu canto, olhando-a descer, com sua meia idade e sua roupa enegrecida. Ela descia soberana, dona de si, arrancando os olhares alheios, como se fosse a estrela da festa.
Até hoje não sei aonde vai; mas, todas as sextas-feiras carnavalescas, deixo-me ficar no meu cantinho, ansioso por vê-la passar. Nunca se atrasa e sempre desce da mesma forma, com os mesmos trejeitos e a mesma sensualidade que sua experiência lhe trouxe. Não quero saber aonde vai, nem mesmo o que faz, apenas a observo e devaneio, penso, penso e não saio do meu mundo.
É noite de carnaval e ela já vem descendo. Não posso deixar de observá-la. Não é bonita nem feia. É simples e incolor como são todas as mulheres de sua idade, mas o seu ritual a torna diferente, única e nos faz, eu e toda a vizinhança, aquietarmos em nossas portas para vê-la passar. Entretidos com sua passagem não reparamos, mas no céu todo estrelado, uma majestosa lua brilha. Não consigo decifrá-la. Não sei se brilha para iluminar a mulher de roupas enegrecidas ou se com despeito, por perder a sua realeza.
Ela desce, com todos os seus encantos. Lá embaixo, entoam-se marchinhas de carnaval. Entramos para nossas casas enquanto, no céu todo estrelado, uma lua cheia e bela, escreve um lindo poema de amor!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

CARNAVAL


CARNAVAL



Naquela época a festa ainda era na Montes Claros, de frente ao Mercado novo. Antes é que fora próximo ao cinema, mas isso já fazia muito tempo. Não, não tinha mais blocos carnavalescos. Aliás, o último desses carnavais, de que me lembro, aconteceu ainda na rua de baixo, a do cinema; tinha uma moça bonita que dançava pra lá e pra cá com um longo vestido rodado e verde. Ela rodava, rodava e o vestido subia quase que na altura da cintura, enquanto eu ficava de olhos arregalados querendo ver a cor de sua calcinha. Não via; ela vestia short, um curtinho, preto, muito preto. Então, meus olhos de menino se apequenavam, até que eu adormecia no colo de minha mãe.
Depois, já na Montes Claros, não havia mais blocos e a festa era na base da pipoca. Um palco montado no meio da rua e todo mundo bêbado pulando pra um lado e pra outro. A festa começava na sexta, passava pelo sábado, continuava no domingo, prosseguia na segunda e se arrastava até à meia-noite de terça, pois daí já era quarta-feira de cinzas e teríamos de descontar os pecados – ou uma parte dos tantos – nas missas quaresmais.
Havia brigas, coisas de bêbados que logo se resolviam com a chegada da polícia. O resto era só a FESTA DA CARNE. Aliás, o próprio nome tem este significado. Nada mais justo, pois vemos uma grande concentração de carnes humanas, corpos desnudos passeando em meio à multidão, a nos atiçar a sede e a fome de carne! Naquele tempo já era assim; já éramos todos sedentos.
Descíamos às oito. Geralmente dois, ou três; um passava na casa de um, que passava na casa de outro e outro, até formarmos o grupo. Chegávamos; reuníamos aos outros, geralmente qualquer um, desde que possuísse uma garrafa de alguma bebida qualquer e o resto ninguém mais se lembrava. Aquilo sim é que era festa. As mulatas não desfilavam pela avenida, faziam-no à nossa frente, para que as possuíssemos e fizéssemos chegarem aos céus. Rebolavam em nossa frente, abraçavam-nos, jogavam-se aos nossos pés.
Depois, cansados de tanta badalação, pegávamos nossas mulatas e subíamos ao morro de Lourdes. De lá, deitados sobre a grama verde, debaixo dos braços do Cristo, olhávamos a lua, ainda tontos de tanta bebida e com os ouvidos ainda entoando a marchinha última. Ao longe ainda era possível escutar uma toadinha que vinha preguiçosa ao nosso encontro. Casaizinhos passavam abraçados; meninos subiam a rua com as mãos nos bolsos, com suas espinhas latentes e suas mentes poluídas, enquanto mães preocupadas, faziam vigília aos pés da Santa, pedindo proteção ao filhinhos desprotegidos.
Ficávamos deitados, olhando a lua, pensando besteira, falando bobagens. A mulata descansava a cabeça no meu peito, os botões da camisa abertos; a perna sobre a minha e os olhos morteiros e, enquanto eu bocejava longamente, ela dizia:
- Bem, que esta noite dure pra toda a nossa vida!
E durava. Aquela noite durava enquanto vivíamos; enquanto ouvíamos a marchinha que vinha de longe e fazia o nosso coração pulsar. Pois era aquela a nossa vida, uma vida de carne, Carnaval!

SAUDADES DO ARNALDO, E SUA ESPOSA


SAUDADES DO ARNALDO, E SUA ESPOSA



Ainda não tive lembranças do Arnaldo. Ontem me dispus a procurá-lo novamente, mas não o encontrei. Andei por toda a redondeza, fui até a sua casa; procurei por sua esposa... Nada, ambos desapareceram. Começo a preocupar pela esposa. E se o homem, enlouquecido tiver seqüestrado? E se tiver matado a pobre coitada!?
Os pensamentos vêem a minha cabeça. Pensei procurar a polícia, mas não tive coragem. Pensei na hipótese da mulher o ter matado; não sei se teria coragem de incriminá-la. Melhor esperar; em algum momento um ou outro há de aparecer. As notícias correm. Sempre chega um com alguma nova informação; já me disseram que haviam encontrado o corpo de uma mulher pelos lados do São Crispim e que, provavelmente, seria o corpo da esposa do Arnaldo. Chegou-se ao ponto de um afirmar que o miserável matara a mulher e depois se jogara no rio, deixando-se levar por suas águas caudalosas...
Outrora, disseram que a esposa matara o pobre homem. Que enterrara o corpo numa vala rasa, próxima ao açude, onde é possível avistar um bando de urubus sobrevoando em roda. A mulher teria ido embora para o Rio de Janeiro, de carona com um viajante por quem houvera se apaixonado...
Um terceiro viera me confidenciar que vira ambos em Bom Jesus da Lapa. O Arnaldo envergando um terno escuro e a mulher com o braço colado ao seu. Disse ter dialogado com o homem que, todo sorridente, teria afirmado, categórico, que iriam, os dois, morar em Ilhéus, trabalhando numa fazenda de cacau.
Recuso-me a acreditar em qualquer versão que me chegue aos ouvidos. Prefiro continuar no meu banquinho a espera de que o Arnaldo apareça no fim da rua, com sua esposa do lado, toda linda, vestida numa blusa decotada e uma saia bastante apertada, com os cabelos negros e encaracolados, sempre com o seu olhar de Capitu. Não quero a morte do meu amigo; não quero a distância de sua adorável esposa. Quero que a vida continue como antes, com seus passos vagarosos e sua preguiça deliciosa.
Penso diuturnamente no Arnaldo e em sua bela esposa. Preocupo-me em encontra-los. Mas não tenho mais forças nem opções para procurá-los.  Sento-me no meu velho banco ao amanhecer, tiro do embornal um maço de palhas secas, o rolo de fumo, o velho canivete e começo a prepara o meu cigarro; depois, acendo-o com a velha  binga e, enquanto saboreio o doce amargo de seu pito, olho distraído para o final da rua, a espera que ambos apareçam, Arnaldo e sua linda e majestosa esposa.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

LEMBRANÇAS DE UM MENINO

LEMBRANÇAS DE UM MENINO
LEMBRANÇAS DE UM MENINO






A brincadeira começava no quintal de casa. Brincávamos o Tinca, o Flávio, o Marquinhos e eu. Construíamos estradas em meio à terra dura; preparávamos os carrinhos; tirávamos os boizinhos e colocávamos nos curraizinhos que fazíamos com palitos de picolé.
Os tijolinhos fazíamos do barro que pegávamos próximo ao muro, debaixo do pé de corante e secávamos em caixinhas de fósforos. Depois de secos, enchíamos os caminhões e saíamos a perambular pelas pequeninas estradas, passando por riozinhos sem peixes ou jacarés, por casas vazias de vivalmas, por enormes pequenos campos floridos, até chegarmos ao ponto final: o ponto do qual havíamos partido.
Descíamos a carga de tijolos; construíamos muros, casas, prédios, grandes aglomerados empresariais. Enriquecíamos, então. Comprávamos bolas de meia; bolas de plástico; bolas de pano e jogávamos no grande pequeno campo do enorme estádio do meu quintal. Tínhamos que jogar dois de cada vez, para não superlotar o pobre do gramado de terra batida. Jogávamos clássicos futebolísticos; éramos Denílsons, Edmundos, Romários, Ronaldos; éramos meninos bons de bola!
Acabados os clássicos, pegávamos nossas potentes armas de brinquedo e corríamos os ladrões de nossa cidade-fantasma, povoada de cruéis assassinos e inescrupulosos vagabundos; todos fantasmas, pois também a cidade o era. Saíamos a vagar por outras plagas, até chegarmos à barragem oceano, então, brincávamos em suas margens, em suas areias brancas e banhávamos em sua água mansa e preguiçosa.
Todos crescemos, casamos, o Marquinhos foi embora. As brincadeiras ficaram sérias. Ninguém virou caminhoneiro, dono de olaria, jogador de futebol, polícia ou ladrão; mas a amizade arraigou-se e não cresceu. Ficou dentro de nós, ainda que longe e abstrata, dentro de nossa cabeça, de nossos corações, nas lembranças que vem e voltam. Enquanto isso, no noticiário faltam jogadores, os policiais fazem greves, os ladrões roubam demasiadamente e os caminhões trafegam por estradas intransitáveis. No fundo do quintal de minha lembrança, porém, os quatro meninos brincam despreocupados, enquanto minha mãe preparava um bolo de chocolate e uma chuva fina começa a cair pelos lados da velha saudade.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O FUTURO APEDREJANDO O PASSADO

      Vi, ontem, o futuro apedrejando o passado. Explico: três crianças apedrejando um velho. Não sabiam aqueles que apedrejavam o seu passado e a base concreta do seu futuro. Observei a cena indignado; o velho xingando os meliantes e eles a apedrejá-lo sem dó, sem piedade, sem pensa de si mesmos. Quisera eu ir junto do velho; resgatá-lo do bombardeio; ajudá-lo a apedrejar os vagabundos. Não fui. Pensei no que me poderia acontecer; temi pelo meu e pelo futuro daquele homem. Fiquei apenas a observá-lo.
     Deste ponto sai o escritor. Entra o cidadão. Onde estavam os pais daqueles garotos? Crianças entre dez e doze anos de idade. Educação vem de berço, de casa, de dentro de nossos lares. Perdoemos as crianças, elas não sabem o que fazem, nada mais são do que modelos de um sistema falido, de exemplos que veem do habitat em que vivem. Castiguemos os pais, com nossa ira, nosso desprezo, nossa pena.
     O velho foi embora e as crianças ficaram, tagarelando besteiras, palavras chulas, fúteis e rindo do pobre homem que descia a rua cambaleando. Eu, trancafiado dentro de mim mesmo, fechei o portão e calei-me. Calei-me de raiva, não daquelas crianças tolas; mas dos seus progenitores fúteis e obsoletos. Homens e mulheres sem qualquer capacidade de procriarem, que colocam os filhos no mundo para que a sociedade crie. Não são aqueles moleques culpados de crime algum. São vítimas de uma sociedade triste, hipócrita e sem qualquer visão de futuro.
     São aqueles o futuro de nosso país, de nosso planeta. Seres incapazes de pensar, de cultivarem sentimentos. Pobre animais movidos por maus exemplos e pensamentos putrefeitos. Pobre do nosso país, do nosso planeta. Pobre do nosso futuro!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

AINDA O SUMIÇO DO ARNALDO

AINDA O SUMIÇO DO ARNALDO
AINDA O SUMIÇO DO ARNALDO


O Arnaldo sumiu. Não tive notícias; não sei se fugiu ou se sumiram com ele. A esposa não apareceu. Apenas ontem esteve em minha casa, trazendo a triste notícia. Fiquei com pena do Arnaldo, pois sei que na condição em que estava não deveria ter desaparecido. Mas, confesso, senti uma ponta de alegria ao pensar que sua esposa agora estaria livre pra mim. Agora, no entanto, sinto-me receoso por não saber do pobre diabo. E se estiver morto (coitado!)? E se estiver vivo e me vier procurar? Não tenho nada com a mulher, mas...
        Hoje sai cedo. Levantei-me; tomei o café; arriei o cavalo e fui. Andei pelos matos, em busca do Arnaldo, de alguma notícia, de alguma pista que me levasse ao seu paradeiro. Nada; nenhuma pista sequer. Ninguém sabia do homem, apenas que sumira. Passei pelos lados de sua casa, pensando encontra-lo pelas redondezas ou, quem sabe, encontrar sua esposa; perguntá-la sobre notícias, oferecer a ela os meus préstimos...
        A casa estava fechada. Nenhum barulho, nenhum movimento; apenas um silêncio profundo. Aquela é uma casinha triste, pequena com paredes de adobe, portas e janelas minúsculas, de madeira, telhado baixo comum e tinta branca, bastante velha na parede. Não pude deixar de notar o jirau, no quintal, seco, sem motivo de vasilhas ou panelas, como se há dias ninguém habitasse àquela morada. Bati à porta de uma vizinha. Disse não saber do Arnaldo nem de sua esposa. Achava que ela estivesse na casa de uma conhecida do outro lado da cidade, mas não me dera certeza...
        Voltei para casa com ideias na cabeça: e se o meu amigo não tivesse fugido? E se a esposa o tivesse matado?... Mas por que haveria de fazê-lo, se ele era o ciumento; se ela era a beleza dela que lhe dava os motivos de desconfiança? Pensei em dinheiro; mas o coitado era pobre, não tinha heranças nem posses. Pensei em vingança, mas não achava motivos para tamanha barbárie. Não. Não haveria de ser a pobre mulher uma assassina. Sua beleza não lhe permitiria cometer tal loucura!
        No hospital me disseram que não tinham qualquer responsabilidade sobre o acontecido; que o homem havia saído pela porta da frente, por vontade própria, enquanto o porteiro fora ao banheiro. Ninguém o vira saindo, mas era a única maneira de fazê-lo. Penso que venha ao meu encontro, ou para matar-me ou para pedir-me algum conselho. Quando vier, se para brigar, brigamos; se para aconselhar-se, bebemos.
        Sentado, agora, no banco da varanda, olhando a rua com seus movimentos habituais, lembro-me do meu amigo, das noites de farra; dos sonhos em comum; dos banhos de rio... Mas, no meio das divagações, eis que me surge sua esposa, com seus olhos verdes, seus cabelos negros e seu corpo perfeitamente esculpido pela natureza. Tento desviar meus pensamentos, mas as ideias convergem para o mesmo ponto, querem vê-la, tocá-la, senti-la carnalmente. Levanto-me; vou à estante, pego a melhor pinga, despejo-a no copo até a boca e tomo numa única golfada. A pinga desce ardendo no peito e ela desaparece.
        Volto ao banco. As pessoas sobem e descem a rua tranquilamente. Todos me olham, cumprimentam e passam. As lembranças da esposa do Arnaldo voltam, mas não as afasto; fixo os olhos na ponta da rua, lá em cima, na esperança de que o amigo apareça, que venha triste, com seu andar humilde, chegue devagar e cabisbaixo e, ainda no pé da escada, me diga:
        - Amigo, hoje quero a melhor pinga, que é pra esquecer de vez aquela cadela!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O SUMIÇO DO ARNALDO

O SUMIÇO DO ARNALDO


Era ainda bastante cedo e eu tomava o meu café e comia um pedaço de queijo, enquanto picava o roleiro e alisava a palha para o preparo do cigarro. Lá embaixo, no fim da rua, dois vaqueiros tentavam segurar um boi-carreiro que havia se desgrudado de alguma boiada. O que se ouviam naquele instante eram apenas o aboio dos vaqueiros e os mugidos descoordenados dos bois em agonia.
            Pensava em visitar o meu amigo; ver como estava sua recuperação, se precisava de alguma ajuda; ver a sua esposa. Enquanto meditava, fechei um pouco os olhos e ao abri-lo deparei-me com ela. Estava linda como sempre, parada a minha frente. Os cabelos negros, esbandalhados, com uma pequena franja a cair sobre os olhos; olhos verdes e grandes, cheios de lágrimas, com uma preocupação latente, como se trouxessem um terror em seu íntimo; a pele macia toda suada, como se viesse apressada; os seios durinhos arfantes, como se o cansaço tomasse conta de si; as coxas firmes aparecendo por baixo do vestido branco que colava ao corpo; a sapatilha toda suja de lama, deixando aparecer os pezinhos frágeis.
            Estava parada diante a mim; estatizada, me olhando enquanto retomava o fôlego. Eu não disse nada; levantei-me e deixei que me abraçasse fortemente, sentindo o  seu corpo, ainda quente, tocar desesperado o meu. Meu coração disparava, mas eu procurava manter acalma. Com certeza não seria uma boa notícia.
            Com os olhos cheios de lágrimas e os lábios carnudos bastante trêmulos – notei que evitava olhar diretamente para mim, e que tinha os lábios extremamente secos – disse-me baixinho:
            - O Arnaldo sumiu!
            Não sabia o que dizer. Como é que um homem decadente igual àquele poderia desaparecer do leito de um hospital? Ela também não saberia responder. Sentamo-nos os dois no banquinho. A rua vazia – a boiada passara e agora éramos ela, eu e o silêncio – segurei a sua mão, deixando cair sobre sua coxa. Ficamos quietos. Eu olhando-a, num sentimento dúbio; ela olhando o vazio, trêmula, insegura.
            - Não se preocupe. Haveremos de procurá-lo. Não deve estar longe; no estado em que se encontra, não agüentaria.
            Sua resposta me surpreendera. Não estava preocupada com o pobre diabo. Temia por mim, por minha segurança. Dissera que o Arnaldo sentia-se enciumado; pensava que tínhamos um caso. Alguém inventara e lhe dissera. Ela tentara dissuadi-lo daquele pensamento, mas não houvera jeito!
            Meu coração estava disparado, mas ainda assim a ideia me veio à mente. Perguntei a ela se haviam sido mesmo os homens quem o tinham espancado. Ela não respondeu. Continuava segurando a minha mão; os olhos fixos no vazio, como se estivesse longe, pensando em coisas passadas. Olhou, subitamente, nos meus olhos. Vi que suas lágrimas haviam secado. Levantou-se e, antes de sair, disse:
            - Tome cuidado; eu não agüentaria perdê-lo.
            Não pude dizer qualquer palavra. Minhas pernas tremiam e não fui capaz de me levantar. Quis correr, pega-la nos braços; beijá-la longamente; levá-la para casa e fazê-la minha. Mas, agora, o problema era outro: o Arnaldo; o meu amigo Arnaldo!

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O LOUCO DE CADA UM


O LOUCO DE CADA UM



Levaram-no ao especialista e classificaram-no como louco. Pelas manhãs de sol perambulava pelas ruas do centro, pontualmente, como se fosse um relógio, sempre no mesmo horário em cada lugar. Carregava consigo todos os seus pertences. Dentro de um velho saco encardido encontravam-se uma calça velha, rasgada e suja; uma bermuda do Flamengo costurada com linha verde, suja; duas camisas, sendo uma social e outra esporte, ambas sujas, rasgadas e velhas.
Ele era velho. Devia contar uns cinquenta anos. Não sabia a sua idade e dizia ter cinquenta e sessenta e duzentos e cinco. Saía caminhando e falando sozinho. Falava coisas fúteis, conversava com amigos imaginários e contava dinheiro; eram milhões e milhões e trilhões o que ele contava. Sempre nas manhãs de sol.
Se chovia não andava. Aninhava-se no coreto da pracinha da prefeitura; acomodava-se e punha-se a cantar músicas antigas: “Pastoras vamos embora, que a madrugada já vem, em busca de nossas cabanas. E lá não ficou ninguém”; músicas de infância: “Dindin, dindin olá - lá, quem não gosta dela de quem gostará” e músicas religiosas: Pelas estradas da vida, nunca sozinho estas, contigo pelo caminho, Santa Maria vai...”. Cantava firme, sabia fazer os graves e agudos; tinha a voz limpa e a canção parecia sair do fundo de sua alma.
De suas casas, acomodadas em seus lençóis e edredons, as pessoas ouviam o seu cantar, misturando-se ao barulho melodioso da chuva. E, enquanto tomavam café e comiam requeijão, lembravam-se dos tempos de criança; das folias de reis, dos tempos do jardim de infância, das manhãs de domingo em que se vestiam com a mais bela roupa e marchavam para a igreja receber a hóstia e a bênção do Pai Eterno.
Vez ou outra, um mais emocionado vestia-se de um guarda-chuva; armava-se de um copo de café e alguma mistura e saía porta a fora. Ele agradecia, pedia que o Pai abençoasse o santo homem e punha-se a comer. A canção cessava e o que se ouviam eram apenas os pingos de chuva caindo sobre o asfalto duro e sem alma.
Num dia de sol ele desapareceu. Não perambulava mais pelas ruas do centro e, nos dias de chuva, não cantarolava mais as músicas de antigamente no coreto da pracinha. Alguns haviam perdido a esperança de reencontrá-lo, enquanto outros se aninhavam em seus sofás almofadados, silenciosos, esperançosos de que uma voz angelical se unisse ao som dos pingos caindo. Não vinha qualquer cântico, nem palavras, apenas suspiros.
Outros loucos apareceram, mas eram comuns; loucos de outras plagas que vinham em busca de migalhas, de piedades alheias. Aquele não. Não era pedinte, não necessitava de piedade, nem de esmolas. Queria apenas cantar, ser livre e caminhar tranqüilo por aquelas paragens. Os outros eram loucos de outros e não o seu louco, afinal, cada um tem um louco que merece. A tristeza tomava conta daquele povo; até que um, mais atento, sentenciou:
- Ele não era louco. Loucos somos nós, agarrados ao passado, preocupados com o futuro. Ele era puro. Puro de mais para nós.
Todos concordaram com o orador. Do seu cantinho, coberto de flores, sob os cânticos angelicais, ele reprovava aquele pensamento. Não queria se puro, desejava apenas ser louco; o louco daquele povo!

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

MINHA VISITA AO ARNALDO

MINHA VISITA AO ARNALDO
MINHA VISITA AO ARNALDO


Hoje fui ao hospital. Senti-me na obrigação de visitar o meu amigo Arnaldo. Por pouco não contive o choro. O pobre coitado estava adormecido sobre a cama. Era um quarto simples, sem conforto e sem muita esperança. Tinha ele muitos hematomas pelo corpo; o olho direito arroxeado pelos socos e pontapés que lhe foram desferidos. A face estava bastante inchada e a respiração a mim parecia bastante dificultosa.
        A sua esposa não se encontrava no quarto. Saíra um pouco antes da minha chegada e eu ainda podia sentir o seu cheiro perfumando todo o quarto. Era um perfume agridoce, uma mistura de romantismo e de pecado. Senti meu peito palpitar, minha pele estremecer e o suor descer pela minha testa franzida. Tentei esconder minha inquietação. O meu amigo estava desacordado – e éramos somente ele e eu naquele quarto – mas eu sentia que ele escutar o pulsar acelerado do meu coração, minha respiração ofegante, quiçá, sentir meu desconforto naquele instante.
        Cheguei mais perto do leito e, a cada mínimo instante, sentia mais fraca a sua respiração. Tive pena e raiva daquele homem, inválido, sobre a cama. Pensei pegar o travesseiro e acabar de vez com aquela situação. Não podia! Aquele homem era meu amigo. Afinal, havíamos crescido juntos, tínhamos toda uma vida de amizade. Era eu o seu mais fiel confidente e, pobrezinho, também seu maior algoz.
        Sentei-me em uma cadeira, colocada ao lado do leito, segurei a sua mão e peguei-me a relembrar o passado: a sua chegada à fazenda, ainda novo; as corridas no pomar e os banhos de rio; as idas à cidade, em busca de festas e raparigas; os sonhos e desenganos de ambos; o encontro com aquela menina desajeitada e bonitinha, que todos os dias chegava cedo à fazenda, cozinhava e cuidava da casa e depois ia embora, pela qual o Arnaldo guardava uma paixão incessante e, mais tarde, com minha ajuda, viria a ser sua mulher.
        Pobre amigo! Agora estava ali, deitado sobre aquela cama, sem um futuro certo, sem rumo, contando apenas a minha amizade e o amor de sua esposa. O choro me veio novamente à mente. Segurei, bocejei para espantá-lo. Levantei-me, peguei o chapéu e fiz menção de me retirar.
        Já me despedia do Arnaldo quando ela chegou. Não disse nada; apenas veio ao meu encontro e, silenciosamente, abraçou-me. Esfriei-me ao sentir o seu corpo junto ao meu. Seus seios tocando meu peito; suas coxas juntas às minhas, suas partes unindo-se a mim. Abracei-a silencioso e sentir profundamente àquele instante, ainda que um pouco receoso, talvez temeroso de que o amigo se levantasse daquela cama de lençóis embranquecidos.
        Sem dizer qualquer palavra, retirei-me do quarto. Fui para casa devagar,flutuando em meus devaneios, observando os pássaros, as flores, relembrando o Arnaldo e nossa amizade. Da minha roupa suada subiu um perfume agridoce, um cheiro de mulher; o cheiro da mulher do Arnaldo!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

OS CHAPEUS E O TEMPO

    Ontem choveu. Choveu manso, de leve, quase que uma brisa a molhar nossos chapeus. Alguém me tem perguntado se uso chapeu. Não, não uso. Nunca fui adepto de tão formoso hábito, mas admiro quem o faz. Sendo para tanto, necessário saber escolher cuidadosamente e com grande sensibilidade o que se usará.
    Houve tempos em que chapeu era sinônimo de nobreza, depois de boemia. Hoje, tal vestimenta nada mais é do que um reles acessório contra o sol. Minto. Esta é a minha humilde opinião. Mas há pessoas que ainda acham que o chapeu seja nobre, ou vagabundo. Para mim, é um acessório, que se bem ou mal posto pode ser nobre ou plebeu.
   Muitos ainda utilizam o chapeu. Alguns carecas, alguns senhores, alguns artistas. Os comuns utilizam-no de acordo com o vento, melhor, segundo os ditames da moda. As mulheres também usam, em ocasiões especiais: festas, casamentos, funerais, lavagem de roupas no rio.
   O chapeu vem varando os tempos, resistindo as catástrofes, aos modismos, às intempéries mundanas, para se tornar em ícone. Símbolo de uma geração que ocultava  a c'roa  a fim de não mostrar a realiza. Realeza plebe, comum, social. Realeza de um povo sofrido, é bem verdade; mas que sabia viver, embora ainda não soubesse. Como hoje ainda não se sabe.