segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O ROUBO DA MULETA


Desde que o mundo existe, existem os gatunos e larápios; mas, agora, a coisa desandou de vez. Quando eu era criança, lá pelos finais de oitenta, até a adolescência, já na década de noventa, os ladrões eram nossos conhecidos, por quem passávamos nas poucas ruas da cidade e de quem, por ordens dos nossos pais e para o nosso bem, mantínhamos alguma distância; mudando, por muitas vezes, o lado da rua, indo passar em cima da outra calçada.

Eles roubavam galinhas, maços de cigarro, pequenas quantias em dinheiro, que eram encontradas nas gavetas dos botecos, enquanto o dono ia lá dentro tomar um cafezinho. Roubos grandes, em casas de família, ou coisas de maior monta, ouviam-se falar que aconteciam, ainda que de vez em quando, em Montes Claros, e, com maior frequência, em Belo Horizonte.

Minha bicicleta, uma Monareta oitenta e seis, que meu pai comprou já usada e que chegou em casa sem freio, dormiu algumas vezes na porta de seu Estanísio,  onde eu ia comprar sabão para minha mãe lavar as roupas ou picolé para refrescarmos o calorão do mês de setembro; tendo dormido muitas vezes também na porta de Edmundo, onde eu ia jogar fliperama quase que diariamente, sem que nunca fosse roubada.

Hoje se roubam de tudo, desde pirulitos de crianças indefesas até as grandes empresas nacionais. Aqueles o fazem por safadeza, estes por falta de ética. Dizem que tudo isso é bem diferente. Mas, sábado, e isto ouvi hoje pelo rádio, no Rio de Janeiro, roubaram a muleta de dona Maria. Talvez ela nem se chame Maria e pode ser que nem seja tão madura para ser chamada de dona. Acredito até que não precise usar muleta por toda a vida, pois, assim espero, pode ser que esteja apenas com uma das pernas quebradas após uma insossa queda de moto, quiçá, tenha sofrido um escorregão vagabundo enquanto lavava a casa da patroa, uma rica senhora do Arpoador. Mas isto não vem ao caso.

O que chama a atenção é o fato de a pobre mulher, enquanto fazia o seu joguinho da Mega-Sena, numa das tantas casas lotéricas cariocas, ter a sua muleta surrupiada, em plena luz do dia, sem que nem mesmo uma câmera tenha filmado a cara do deliquente. Sábado, realmente, não era o dia de sorte de dona Maria, que perdera a sua muleta e ainda não ganhou na Mega. Mas, hoje, ainda no noticiário, ouvi que um cidadão do Meyer resolvera doar para a pobre mulher uma muleta, que já não usa mais, com a condição de que quando ela não mais precisar dela, que o devolva, para que possa doar para outro necessitado.

Talvez, nesta tarde, dona Maria tenha feito a sua fezinha, depois de ter buscado, na garupa de uma moto, a muleta na casa do seu doador. Pode ser que acerte os números desta vez e não precise mais trabalhar em casa de família. Quanto ao ladrão da muleta, quem sabe ele tenha tomado um tombo, enquanto fugia com o objeto debaixo do braço, e agora a esteja usando para se locomover de um boteco a outro pelas ruas cariocas. Mas, tudo isto são apenas suposições e nada mais.  

domingo, 25 de novembro de 2018

QUADRILHA


Sempre que chove é a mesma coisa. Seu Antônio, que mora na roça e precisa da chuva para que o feijão, que já está grandinho, escape; para que o milho não morra; para que a barraginha não acabe de secar, agradece a Deus pela bênção que cai dos céus. Já até pediu que Benvinda reze o Rosário, que é pra agradecer. E quando for à cidade, ele vai mandar rezar uma missa pra São Pedro, que abriu as torneiras lá em cima.

Pedrelina não gosta de chuva. Se chove muito, a casa alaga; os meninos não podem ir à escola; as roupas vão acumulando no cesto, sem que ela possa lavar e secar. Quando Zé voltar do Maranhão, onde trabalha numa firma de carvão vegetal, vai chegar ele no canto: ou eles mudam pra uma rua lá de cima, pra uma casa decente, com varanda pra lavar e secar as roupas, onde a água não entre e até onde o carro consegue chegar pra pegar os meninos, ou ela vai embora.

Benvinda torce pra que inverne. Tomara que a chuva caia até o início de dezembro. Daí o feijão firma e dá pra colher. Depois ela volta de novo e só para em fevereiro, que aí Luciana volta. Luciana é filha de Benvinda e Seu Antônio. Menina nova, estudada, que sempre liga na casa de Joaquina e manda avisar que em Belo Horizonte tá tudo bem, que volta no início do ano que vem, depois que se arranjar por lá, que comprar um carrinho e tiver dinheiro para comprar um barraco na cidade.

Zé faz tempo que não liga. Todo mês deposita duzentos reais pra Pedrelina, que é pra feira, pras contas e pra comprar roupa pra os meninos. Pedrelina espera que ele volte em dezembro, mas, ele não sabe se volta pra ela ou se vai morar com Luciana, que nunca foi pra BH, que saiu direto pra o Maranhão, quando Zé veio em casa pela última vez, há uns seis meses.

A chuva cai mansa sobre o telhado. Benvinda reza agradecendo a chuva e pedindo pela filha, enquanto Seu Antônio, sentado num banquinho, olhando a chuva lá fora, prepara um grosso cigarro de palha. Pedrelina, deitada no sofá, assiste ao Globo Rural, torcendo pra chuva não engrossar, enquanto os meninos ainda dormem no quartinho dos fundos. Zé e Luciana dormem agarradinhos, depois de uma noite agitada no forró de Tuniquim.  Talvez nem voltem mais; pois Luciana já está até sentindo enjoos e entoteando. Pode ser que esteja esperando bebê.

sábado, 24 de novembro de 2018

A SORTE DE LINA


Às quatro e trinta da manhã, Lina já estava de pé. Enquanto a água fervia, fez suas ablações, olhando na tela do celular as fofocas do Whatsapp, vendo as fotos no Insta, invejando os posts do Face. Todo dia era a mesma coisa, e isto já a estava irritando. Queria viajar, ir à praia, tomar uísque na banheira, como faziam as atrizes da tv.  

            Um dia Lina haveria de ser rica. Por isso, jogava todas as segundas, quartas e sextas na Lotofácil. Eram sempre os mesmos números; sempre no mesmo caixa, sempre à mesma hora. Fazia já uns três anos que jogava. Dois, cinco, sete, oito, nove, dez, doze, treze, quatorze, quinze, dezoito, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três. Ao menos uma vez a cada quinze dias, fazia onze pontos e recuperava quatro reais do que havia gastado nos jogos. Mas ela queria mais. Queria mesmo era fazer os quinze pontos. Ficar rica. Largar a vassoura num canto. Viajar e tomar uísque.

            Às cinco e meia, já varria a rua Treze, por onde sempre começavam. Era uma sexta-feira. Não era uma sexta-feira treze. As meninas conversavam sobre o que fizeram à noite, enquanto a poeira tomava conta da rua ainda escura. A luz fraca do poste não mostrava a irritação de Lina. Aquelas fotos, as meninas conversando destarameladas, a poeira subindo, entrando pelo nariz, pela garganta, a boca seca. Lina tinha vontade de ser rica, tomar uísque, largar a vassoura de vez.

            As meninas nunca varriam as ruas direito. Pérola falava sobre o namorado. Ele nunca a deixava satisfeita e ela sempre repetia a mesma coisa; que arrumaria outro; só não o deixava porque ele tinha dinheiro; porque ele pagava a sua faculdade. Lina nunca gostara das meninas, eram todas fuxiquentas, preguiçosas. Pérola era sem vergonha. Desde o primeiro dia não fora com a sua cara. E, quando fosse rica, nem se lembraria mais de Pérola, nem das outras. Muito menos da rua Treze.

            Geralmente saíam às nove; mas, como as meninas conversassem mais do que nos outros dias, Pérola falasse das posições que o namorado tentara, das vezes que havia falhado, do encontro que tivera com um amigo dele, antes que ele chegasse, terminaram às nove e trinta. Lina estava nervosa. Por isso não gostava delas, nunca se preocupavam com o que faziam, com a hora, com o que ela precisava fazer.

            Como de costume, com a vassoura na mão, passara na mercearia e comprou uma caixinha de cerveja, da mais barata, pois era final de mês e o dinheiro não daria até o pagamento. A lotérica estava cheia. Se tivesse chegado às nove e dez, certamente estariam apenas os dois velhinhos, que sempre jogavam na Mega àquela hora. Eles já não estavam lá. Deixara a caixinha e a vassoura a um canto e se pusera a cutucar o celular.

            Jogara os mesmos números e pegou a caixinha de cerveja. Já estava na esquina quando se lembrara da vassoura. Voltou para buscá-la e já saía quando anunciaram o assalto. Como já tivesse na porta, tentou correr. Um tiro bem na cabeça e tudo ficou escuro. Lina não ficaria mais rica, não veria as meninas, não varreria mais a rua Treze, também não precisaria mais levantar às quatro e trinta.

            De noite, pérola comemorava com o namorado os números sorteados da Lotofácil: Dois, cinco, sete, oito, nove, dez, doze, treze, quatorze, quinze, dezoito, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três. Ele nunca tinha roubado um cartão de jogo, mas aqueles números na mão daquela mulher chamaram a sua atenção.

 A cerveja estava quase empedrando. A vassoura continuava à porta da lotérica, enquanto Lina era enterrada silenciosamente no cemitério da cidade, quase como indigente. Apenas uma das meninas fora reconhecer o corpo. Pérola também não gostava dela. Mas sempre gostara de tomar uísque na banheira com o namorado, ou com o amigo do namorado.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O ANONIMATO E A DISTÂNCIA


Talvez o mais decente para um escritor seja, realmente, o anonimato e a distância; pois, assim, não se misturam o autor e a obra, o autor e o personagem, o autor e os autores. E isso sempre é conveniente saber: poder parecer piegas, maçante, manjado mesmo; mas, de fato, cada leitor é deveras um autor. Por isso, quando escrevo e publico, deixo logo de ser o pai da criança e, por conseguinte, concordo com todas as interpretações possíveis e plausíveis.

Da mesma forma, enquanto leio João Ubaldo Ribeiro, Vinícius de Moraes ou Christian Carvalho Cruz, interpreto-os de acordo com minhas mais convictas emoções, de acordo com as minhas mais prováveis compreensões, confundindo, por vezes, Autor – Personagem – Obra. Por isso, não culpo os leitores que me imputam o sumiço do Arnaldo, que me veem como um poeta inveterado, como uma cópia imperfeita de Guimarães Rosa e Jorge Amado. A interpretação é a conveniência do leitor-autor e, portanto, a mais pura verdade, ainda que sejam concretas inverdades.

Faço, então, a mea-culpa: também eu crio meus leitores; também eu sou um leitor inveterado daqueles que me leem os textos. E talvez por isso eu os conheça tão bem, embora sempre à minha maneira, conversando, silenciosamente, por vezes, com este ou aquele, pedindo, ainda que intuitivamente uma opinião, fazendo parcerias, escrevendo a mais mãos aquilo que uma não faria com tanta dignidade.

Talvez o mais decente seja, realmente, o anonimato e a distância, pois, desta forma, não saberá cada leitor-autor que durante um espaço de tempo, em frente ao computador, todos eles se escrevem nas linhas de uma Crônica ou nos versos de um poema, para em seguida serem jogados, sem qualquer tipo de piedade, nas entranhas das redes sociais, para serem desfeitos e recriados por tantos outros autores, sendo compreendidos das mais diferentes maneiras, de todas as formas, em todas as suas crudelíssimas veracidades.

E talvez isto seja o mais justo, uma vez que nestes caminhos tão turbulentos e tortuosos, de que adiantaria a lida, se todos não caminhássemos juntos, se não falássemos a mesma língua, com nossos tantos sotaques e pensamentos, se não escrevêssemos todas as nossas histórias e estórias? Não há dúvida, a melhor escrita é o distante anonimato!  

terça-feira, 20 de novembro de 2018

KEVIN ALEXSANDER


Faz uma semana que Kevin nasceu, cheio de sonhos, com o viço e a esperança que todas as crianças sempre trazem consigo e que, nós, adultos inveterados, guardamos tristemente em alguma gaveta, da qual nunca mais lembramos a real localização. Talvez tenha chorado ao nascer, para, um pouco depois, descansar de todo o trabalho despendido, no sereno colo materno, enquanto Alex certamente segurava umas lágrimas, que sempre teimam em cair.

Pode ser que Kevin, quando grande, seja locutor, o Famoso Kevin Alexsander, com sua possante voz de veludo; pode ser ainda que lecione Português e Espanhol na rede estadual de ensino; é possível que, nas horas vagas, trabalhe como DJ, animando as almas dos jovens que ainda não terão se perdido nas entranhas dos cursinhos pré-vestibulares ou nos emaranhados das redes sociais; mas, certamente, Kevin Alexsander haverá de ser artista como o pai, fazer teatro e hipnotizar sonhos.

Os tempos não são mais os mesmos e, por isso, o menino Kevin não haverá de descer a Amintas Sales, carregando um caixote de engraxate, empurrando um carrinho de picolés; assim como não jogará bola à beira da barragem do Renovação, não buscará pequi na mangas de Zé Lopes, nem caçará passarinho no Santa Tereza.

Pode ser que Kevin não seja, e certamente não será como o pai, mas, convenhamos, os filhos são a evolução dos pais e, por isso, trazem consigo toda a esperança de que tudo possa ser bem melhor do que hoje, do que fomos, do que sonhamos.

Faz uma semana que Kevin nasceu, cheio de sonhos. E, agora, enquanto dorme, embalado por alguma canção de ninar, ou brinca tranquilamente no seu berço, a pequena criança tem a plena certeza de que o menino é o pai do homem. E, subitamente, as lágrimas teimam em descer dos olhos de Alex, num átimo inconteste de felicidade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O RIO DE VINÍCIUS


Na televisão, preferencialmente, tenho assistido aos programas esportivos, sobretudo os que falam dos times mineiros; primordialmente, aqueles que falem sobre o Galo. Caso contrário, fico ligado no rádio, primando pelas ondas do AM, que tocam, quase sempre, esporte e música velha. Mas, vez ou outra, dou um pulo nos canais jornalísticos, que é para descortinar um pouco das minhas utopias, que é para pisar um pouco sobre a triste realidade em que vivemos, e, como contraponto, por vezes, descanso a mente nos filmes de Faroeste.

            Durante as manhãs, após as caminhadas, quando caço pequi e esfrio a cabeça das dores na coluna, leio, deitado na velha rede, duas ou três Crônicas de Vinícius de Moraes, que é pra não esquecer que a poesia ainda nos é indispensável, e que devemos respirá-la, ao menos uma vez ao dia, para que não nos embebamos demasiadamente das mazelas que nos rodeiam.

            Hoje, contrariando a minha rotina, não cochilei após o almoço, assim como não me ative aos programas esportivos. Munido de uma raquete, peguei-me a torrar as muriçocas que se proliferaram depois das chuvas, enquanto assistia ao noticiário, tentando separar os barulhos das muriçocas, as conversas na calçada e as informações debatidas na TV.

            Numa bancada, quase formando um U, o âncora falava sobre a retirada da Força Nacional de Segurança do Rio de Janeiro, que haverá de acontecer ainda no findar deste ano, passando a palavra aos debatedores, afirmando, porém, antes, que de nada tem resolvido essa intervenção. Ainda não tenho conversado com as pessoas de lá sobre a situação, mas, lembrei-me imediatamente do Poetinha e sobre como haveriam de ser as suas Crônicas neste tempo de incertezas.

            Após um breve instante de reflexão, eis que a minha alma novamente se apaziguou.  Certamente que o Vinícius não avexaria, embora uma dor metaforicamente o roesse por dentro. Placidamente, tomaria mais um gole de uísque e reafirmaria todas as esperanças que apenas os poetas possuem, ainda que muitas vezes disfarçadas em melancolia e incongruências; depois, sentaria-se defronte ao mar e, observando as mocinhas que porventura passassem pela praia naquele instante, comporia mais uma música, escreveria mais um poema e, por fim, amaria a vida como se não houvesse o amanhã, pois, convenhamos, tudo sempre há de melhorar.

            Assustei-me com o clarão, enquanto um pipocar estranho me feria os ouvidos.  Não eram tiros de fuzis. Também eu não estava na praia, tomando uísque com o Poetinha. Eram apenas as muriçocas que vinham, feito camicazes, bater direto na tela da raquete. Os jornalistas já não debatiam mais sobre política. Falavam agora sobre músicas, que em nada lembravam Vinícius, crônicas ou poesias.  

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

BERNADETE SILVA


Conheci a Bernadete nos tempos de rádio. Ela tinha uma voz grossa, potente, imponente mesmo. Chegou numa manhã agitada, quando os telefones não paravam de tocar, e, sem cerimônias, pediu uma oportunidade. Sempre quisera ser locutora de rádio. Crescera ouvindo Paulo Lopes, Eli Correia e Zé Bétio. Treinava em casa diariamente, falando em latinhas de salsicha, conversando com a voz empostada de frente ao espelho, repetindo o que falavam os grandes locutores. Puseram-na para atender o telefone. Se desse, um dia, colocariam-na ao microfone.

Durante quase um ano, Dete, pois assim passamos a chamá-la, embora não gostasse, mas respondesse, por educação, ficara detrás da mesinha, recebendo as ligações dos ouvintes, anotando os pedidos musicais, repassando as ligações para o estúdio, quando alguma ouvinte mais assanhada insistia em falar com um dos locutores. Nunca reclamara; mas também não escondia que o seu desejo era estar do outro lado do vidro, falando, oferecendo músicas e abraços aos seus ouvintes cativos.

Enquanto falávamos ao microfone, era comum a vermos balançar os braços no ar, como sempre fizera o Amadeu, balançar a cabeça, como fazia o Dagoberto, e repetir as palavras que pronunciávamos à nossa audiência. E aquilo nos tocava profundamente. Por isso, reunimo-nos, numa manhã de Agosto, quando ela ainda não tinha chegado, e, cerimoniosamente, pedimos ao diretor que a deixasse falar. Tiraríamos uma hora dos nossos programas e daríamos a ela. Também passaríamos a atender às ligações, para que ela não se sobrecarregasse. Acordamos todos, então, que Bernadete Silva seria mais uma das possantes vozes da nossa rádio.

Lembro-me, claramente, da felicidade de Bernadete ao saber da sua promoção. Não nos agradeceu, mas, prometeu se esforçar ao máximo para que, um dia, pudesse alcançar o patamar em que nós estávamos. E, rapidamente, ela nos alcançou. Com sua voz forte e seu gênio decidido, trabalhava todos os dias com a voracidade de um leão, sempre sorridente e prestativa, correndo atrás de propagandas, fazendo serviços bancários, produzindo e apresentando programas de domingo a domingo. Não queria folga nem férias. O trabalho era a sua distração.

Com sua força de vontade e seu talento, Bernadete conquistou o seu espaço na rádio e, logo, sem que isso fosse surpresa para nós, chegou ao, antes tão desejado por todos nós, poderoso cargo de diretora. Como primeiro ato, numa modorrenta tarde de sexta-feira, reuniu-nos em sua sala e, agradecendo pelos serviços prestados, disse que todos estávamos dispensados. A rádio teria, a partir de então, um novo rumo a ser seguido, com uma cara nova, com locutores jovens e dinâmicos, e, portanto, nossos serviços não seriam mais necessários. Nós havíamos criado um monstro.


NÓS, OS TIOS ATLETICANOS COM MAIS DE TRINTA


            É batida a ideia de que todo brasileiro seja um técnico em potencial, porém, já não se trata de uma verdade tão latente, sobretudo, após o advento da internet e seus agregados. As crianças já não assistem ao futebol como assistíamos antigamente. E, com isto, já não se contentam em ficar por mais de noventa minutos vendo uma partida de qualquer time brasileiro; assistem aos jogos do Barcelona, Chelsea, Manchester City, Real Madrid, mas ignoram, por exemplo, um Atlético e Cruzeiro. Ir ao estádio, só se for na Europa. Por aqui, preferem ficar de frente ao videogame, jogando com algum time europeu.

            Cabe a nós, portanto, os tios com mais de trinta, sofrer com os jogos do Galo. E como temos sofrido com as suas enfadonhas apresentações. Não pela esperança de que o time dê shows, que goleie seus adversários, que encha os olhos dos aficionados; mas, sofremos pela covardia, pela apatia dos milionários atletas que envergam a camiseta alvinegra, sem o sangue nos olhos que caracterizavam tantos atletas de outros tempos.

            Jogadores de habilidade, de classe, de grandes enfeites são bem-vindos em qualquer grande clube; mas, os alvinegros, diferentes de muitos outros, não fazem conta destes. Pedem apenas que joguem com raça, virilidade, que se doem ao nosso time, assim como fizeram tantos outros que não sabiam nem ao menos fintar, mas que corriam durante todo o jogo, se matavam em campo e jogavam bola como se a grama fosse o seu prato de comida, e a bola um vistoso pedaço de carne.

            Continuemos nós, os tios com mais de trinta, a carregar o glorioso Galo das Minas Gerais, esperando que um dia não precisemos mais contar com Patric, Elias, Cazares, Denílson e tantos outros que muito pouco fazem pelo nosso time, contribuindo apenas para o seu endividamento, sem levarem em conta toda uma vida de lutas e conquistas que tornaram o Clube Atlético Mineiro num dos grandes clubes do Brasil.

            Enquanto não chegam os jogadores que queremos; enquanto a diretoria não realiza o seu trabalho com a eficiência que sonhamos; enquanto os títulos não retornem às nossas mãos, aprazamos em ver em um jogo contra o rebaixado Paraná, onde, com dois jogadores a mais, nossos “imponentes” atletas toquem a bola de um lado para outro, sem atacar, sem ameaçar verdadeiramente o fraco adversário, com medo de levar um contra-ataque. Isto é o que nos dão, mas não o que queremos. E tenho dito!
              


terça-feira, 13 de novembro de 2018

SOBRE A MINHA INAPTIDÃO DECLARADA PARA O FUTEBOL


Seguindo a genética da família, se é que isto conta neste caso, nunca prestei para o futebol, embora sempre gostasse de correr atrás da redonda. Assim, de domingo a domingo, detrás do parque, no campinho do Buriti, Renovação, Diamante, ou no campinho de Menom, lá estava eu, correndo de um lado para outro, chutando a bola igual doido.

 A prova de que não prestava para o futebol é o fato de eu ter passado por todas as posições nas quatro linhas. Comecei pela defesa, atuando "gloriosamente" pela zaga, no campinho detrás do parque e, depois, no Real Madri corjesuense. Não tinha preferência por nenhum quadrante próximo à área e, portanto, jogava pela direita, pela esquerda ou no centro, falhando em qualquer um dos seus quadrados.

Depois, aproveitando da minha velocidade, embora o fôlego não ajudasse,literalmente, caí para os lados do campo, jogando, ora pela direita, ora pela esquerda; correndo quase velozmente por ambos os lados, não cruzando nem defendendo, pois, quase não ia ao ataque e, incrivelmente, quando ia, igual louco, não tinha fôlego para retornar à defesa.

Por uma ocasião, no campo do Cecorje, grama alta, onde todos sempre queríamos jogar, pois era o estádio da cidade e, consequentemente, apenas jogos de maior monta eram ali realizados, joguei pelo meio de campo. Como não era volante nem meia, não atacava nem armava; apenas ficava, feito galinha tonta, correndo de um lado para outro.  Ato contínuo, fui rapidamente substituído pelo treinador, terminado de assistir ao jogo debaixo de uma sombra, encostado no muro.

No ataque, joguei também uma vez, num torneio debaixo de chuva, numa manhã de domingo, no pelador do Renovação. Na única chance clara de gol, numa maldita bola que me sobrou, ficamos o goleiro e eu frente a frente. O gol enorme me sorrindo e Araponga (este era o nome do goleiro) pulando que nem canguru, crescendo em minha direção. Desesperado, mandei a bola pelo alto, enquanto deveria apenas tê-la tocado por baixo, no canto ou entre as pernas do arqueiro. Ela foi lenta, direto nas mãos do goleiro, que saiu rindo da minha cara.  Como consequência, atendendo aos pedidos da torcida e dos outros jogadores do meu time, fui substituído, e ainda saí vociferando, maldizendo a substituição.

Por último, num átimo de loucura, cismei de ser técnico. Primeiro, num time de garotos da escola, num campeonato interclasses: chegamos à final, mas, devido às fortes chuvas e as goteiras na quadra do CAIC, não houve o jogo final. Depois, num jogo do Real, quando tentei, sem sucesso, substituir um dos nossos atletas que teimava em não sair. Para não ficar queimado, tirei um dos menos espirituosos, que, para o meu azar, estava jogando bem àquela tarde e, com a sua saída, logo numa falha do seu suplente, levamos um gol.

 Depois, aproveitando de um telefonema da rádio, onde solicitavam a minha presença, para substituir um locutor, que por algum motivo, precisava sair do ar, retirei-me da beira do campo, aposentando-me do cargo e dos encargos futebolísticos.

Hoje, uns tantos quilos acima e sem o viço de outros tempos, ajeito-me tranquilamente no sofá e munido do controle remoto e de algumas latas de cerveja, com um belo prato de tira-gosto sobre a mesinha, aprazo-me em reclamar dos jogadores do Galo, vociferando contra o Levir que, erroneamente, bota o Elias em Campo, ainda por cima, como segundo volante, num famigerado 4, 2, 3, 1, com Luan se matando em todos os quadrantes do campo e o Cazares passeando, inoperante, em campo.

E, novamente, confirmando a minha inaptidão para o futebol, dentro ou fora das quatro linhas, Elias, numa bonita jogada pela esquerda, tabelando com Cazares e, em seguida, caindo para o meio de campo, recebe uma bola açucarada, tocada por Fábio Santos, e marca um belo gol, para a minha felicidade.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

O NOSSO MELHOR AMIGO


Cláudio, nos tempos de escola, era o melhor amigo de todos, e talvez fosse este o seu maior problema: ninguém é o melhor amigo de tanta gente. Éramos uns trinta indivíduos, entre meninos e meninas, exigindo a amizade exclusiva de Cláudio, que nunca se decidia sobre nada. E, hoje, tenho a plena certeza de que isto o aporrinhava.

Todo mundo sempre queria sentar perto do Cláudio, quando ainda se dispunham os alunos em duplas, para que um ajudasse o mais fraco, afinal, como dizia uma antiga professora: “Duas cabeças erram melhor que uma.”. Nem era tamanha vantagem sentar com o Cláudio, afinal, como eu já disse, ele nunca se decidia sobre nada e, por isso, nós tínhamos que decidir por ele.

Para que se resolvesse a questão, o professor coordenador da turma sempre o colocava sozinho, na primeira carteira, junto do mestre. A verdade, e isto ninguém me tira da cabeça, é que também eles queriam ser os melhores amigos do nosso amigo. E lá ficava o Cláudio, na primeira carteira, solitário, sob os olhares invejosos dos amigos, que também queriam estar ali, junto dele.

Já no terceiro ano, Cláudio não sabia o que fazer: se prestava vestibular ou se tentava algum concurso. Também nós não sabíamos. Todos esperávamos pela conclusão dele para, então, seguirmos o mesmo caminho. Como ele nunca resolvesse, decidimos todos levá-lo para o boteco. Era, talvez, uma sexta-feira. Fomos parar num barzinho detrás do morro, debaixo dos braços do Cristo Redentor.  

Durante toda a noite bebemos. Daí uma semana terminaríamos os estudos secundaristas e ainda não tínhamos um rumo a seguir. Algum colega dissera que o melhor seria fazer medicina, mas que só iria se o Cláudio também fosse. Outro insistia que o mais viável era tentar um concurso, afinal, era a garantia de um serviço efetivo e de boa paga, mas também só faria as provas se o Cláudio também fizesse. Todos os outros fizemos nossas considerações, sempre com a condição de que o nosso melhor amigo também seguisse o mesmo caminho.

Ele pouco falara durante todo o tempo. Sempre concordava com as falas de todos e dizia que talvez fizesse um ou outro curso, talvez tentasse esse ou aquele concurso, mas achava que precisava pensar um pouco mais, pesar os prós e os contras de cada proposição, afinal, nada devia ser resolvido assim: de supetão. E todos nós, ainda que desapontados, como sempre, concordamos.

O dia já despontava quando fomos embora. Pela primeira vez, Cláudio não quis a nossa companhia. Disse que precisava andar um pouco sozinho, que não nos magoássemos, mas, necessitava de um pouco de solidão para pensar sobre tudo aquilo que conversamos durante a noite. Relutamos, mas, frente à insistência do amigo, deixamos que se fosse sem a nossa companhia.

Ainda hoje não tenho mais notícias do meu melhor amigo, assim como todos os outros colegas, com os quais ainda tenho quase que diária convivência, ainda que por telefone ou pelas redes sociais, que nunca mais ouviram falar do Cláudio. Apesar disso, onde estiver, ele sabe que ainda é o nosso melhor amigo.  

sábado, 10 de novembro de 2018

EVERALDO, O POETA!



Enquanto caminhava pelas ruas solitárias da pequena cidade, lembrava-se do poeta Everaldo. Aquele era um poeta simples, sem grandes pretensões e sem vínculo com as panelinhas literárias da cidade; talvez por isso, ainda não fosse, deveras, reconhecido. Mas, era, de fato, o maior poeta que ele conhecera. O poeta já devia estar adormecido em seu leito, no aconchego do seu lar, sonhando as tantas veracidades que sempre dizia nos botecos, enquanto tomavam cachaça e jogavam porrinha.

Os poemas do Poeta, pois, entre os amigos, já não o chamavam de Everaldo, em nada deixavam a desejar aos clássicos poemas nacionais. Não sabiam se este era o seu nome, afinal, todo poeta pode ser um outro ser a cada instante; por isso, convencionou-se, entre os mais diletos, chamá-lo pela alcunha, e isto bastava. Não eram muitos os amigos, apenas cinco, ou seis, que se reuniam quase diariamente na praça da igreja, descendo pela esquina do Pelotão policial, passando pela rua do meio, com uma breve parada na Gameleira, até que se chegasse ao posto de gasolina, onde faziam os botecos da redondeza, todos os quatro, até que o galo cantasse pelos lados das casinhas.

Everaldo não versava suas Elegias, Odes e Sonetos em qualquer simples ocasião. Para ele a Poesia era um ser superior e, por isso, só devendo ser recitada em momentos especiais, acompanhado de violão e coros enternecidos. Assim, declamava-os sempre depois da meia-noite, quando a bebida já lhe havia subido à cabeça, acompanhado pelo dedilhar preguiçoso do violão de Amarildo, sob o entoar descompassado de Clarinda, uma velha desarrazoada que quase sempre aparecia meio tonta.

Assentando-se na murada da velha casa, olhando para a rua escura, via um cachorro que dormia tranquilamente no fosso do lava-jato, e lembrava-se de Everaldo. Certamente que aquela cena daria um mote para o Poeta, que, incorrigível, como sempre fazia, recitaria-os mentalmente e guardaria-os para uma ocasião propícia, recitando, solenemente, versos que diriam verdades que ninguém haveria de contestar e nem mesmo desdizer.

A verdade é que Everaldo talvez fosse mais que poeta. Quiçá fosse ele a voz da desrazão que todos, em algum momento, sempre quisessem ser, mas que, por questões de razoabilidade, nunca ousavam mostrar. E assim, de boteco em boteco, iam todos seguindo o Poeta, bebendo cachaça e ouvindo as coisas que somente ele tinha coragem de dizer.

Já era tarde. O sono batia, os olhos pesavam e alguns poemas já lhe subiam à cabeça. Não podia, aquilo eram coisas para Everaldo, que já devia estar num sono muito mais além da poesia. O melhor a fazer era ir para casa. Talvez amanhã tudo se resolveria e, quem sabe, o amigo, lhe permitisse uma nesga de poesia.  

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

OPERAÇÃO CAPITU



Acordei com a notícia de que a operação Capitu está sendo posta em prática pela PF aqui em Minas. Parece que as coisas estão se encaminhando, ainda que lentamente, para uma limpeza pública e, ainda que eu não acredite tanto mais no ser humano, fica a esperança de que alguma coisa seja, de fato, consertada, sem que precisemos voltar ao ponto de partida. O que, aliás, eu acredito que seja o melhor: começar tudo de novo.

No Rio parece que também estão acontecendo algumas operações, com prisões de gente grande, igual por estas bandas. É muita sujeira para limpar. E, muitas vezes, é gente suja limpando as sujeiras praticadas por outros sujos. Parece estranho mesmo, mas, a vida é realmente desta maneira, pois, quase sempre, alguém tem rabo preso com outrem e com outro e outro e outro, numa cadeia quase infindável. Mas ainda resta esperança. Isto é o que importa.

Apesar da seriedade da coisa, o mais interessante são os nomes dados às operações. A atual mineira, por exemplo, chama-se Capitu. Seria por que alguém traiu alguém?! Dúvida irrespondível, afinal, ainda não há o veredito sobre se Capitu traiu ou não o pobre Bentinho. O certo é que ele continua na boca do povo, levando todos os nomes, sofrendo todas as maledicências da urbe. Depois de tantos anos, ainda não pararam de zoar o coitado.

Alguns amigos meus dizem que ela o traiu, afinal, não teria como o filho nascer à cara do Escobar se Capitu não tivesse um caso com ele. Outros vaticinam que são muitos os casos em que o bebê nasce com a cara de outrem simplesmente pelo fato de haver a convivência constante; por alguma grande admiração; quiçá, por alguma dessas coincidências da vida, assim como pode uma mulher morena, casada com um homem também moreno, ter dois filhos, gêmeos ou não, sendo um branco de olhos de folha seca e outro moreno de olhos acastanhados.

Ainda não consegui chegar a qualquer conclusão plausível sobre o caso de Capitu. Isto, porém, não há de causar qualquer estranhamento ao leitor, afinal, nunca consigo chegar à conclusão sobre nada que valha a pena. Mesmo tendo lido umas três vezes a obra de Machado, levando em consideração o fato de serem os Realistas extremamente pessimistas, ainda tendo a dar um voto de confiança ao fato de que Bentinho fosse um ser, sobretudo, cismado, talvez, embora carioca (ou fluminense), quase um mineiro em sua essência. Assim, talvez ela o tenha traído, ou, quem sabe, ele esteja cheio de cismas somente.

Mas, eis que me surgem algumas dúvidas: quem seria Capitu nesta operação? O Joesley?!  Escobar seriam os tantos políticos, empresários e todo mundo que está sendo preso?! Certamente, o povo somos os Bentinhos da vida. Sempre traídos, mas, não menos, sempre esperançosos de que tudo seja uma grande mentira. Uma armação vagabunda do destino, sempre com suas brincadeiras sem graça.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O VELHO LORDE


Todas as quartas e sextas, o homenzinho chegava ao boteco sempre à mesma hora, como se fosse um lorde inglês do século XIX. Não dispunha de roupas bonitas. Ao contrário, vestia-se quase sempre com uma velha calça jeans surrada e uma camisa social encardida; calçava uma botina gasta e trazia sobre a cabeça um chapéu de massa, metodicamente inclinado para a esquerda, como que para compensar a sua tendência direitista. Mas agia sempre como os lordes de outrora.

Da minha janela, eu o avistava subindo a rua lentamente. Vinha do lado da lagoa. Não sei da sua origem, mas, talvez viesse do Riacho da Areia, do Riacho Fundo, quiçá do Cercado. Não vinha de muito perto, mas, também não devia ser de muito longe. Não ofegava, embora o suor lhe descesse pela testa. As botinas estavam sempre sujas de terra, ou lama, de acordo com o tempo. Cumprimentava a todos que passavam, sutilmente, com um balançar de cabeça. Eram sempre os mesmos atos.

Chegava por volta das dezesseis e trinta; batia os pés três vezes, ainda no asfalto; olhava a rua de cima a baixo e entrava no boteco, cumprimentando, placidamente, com um balançar de cabeça, aos que se encontravam no recinto. Sentava-se sempre à beira da porta; tirava o chapéu e punha a um canto da mesa, próximo ao seu braço direito; cruzava a perna direita sobre a esquerda e ficava balançando os pés num único ritmo, como se cantasse com os pés uma música há tempos aprendida.

Com o habito adquirido, o dono do boteco trazia-lhe sempre uma dose generosa de conhaque com licor de pequi, a qual o velho bebia num único gole. Depois, já descansado, estalava os dedos e pedia uma folha e uma caneta. O homem trazia junto do pedido mais uma dose de bebida, que, agora, era degustada lentamente, como se clareasse os seus pensamentos. Escrevia por um longo tempo e, quando já eram dezessete e quinze, sem que consultasse o relógio ou perguntasse as horas a alguém, deixava o dinheiro sobre a mesa; pegava o chapéu e punha na cabeça; despedia-se dos presentes e saía.

Faz algum tempo que o velho não aparece.   Por curiosidade, tenho perguntado sobre o seu paradeiro ao dono do boteco, que também não tem notícias. Á propósito, o mesmo diz não saber de onde é, ninguém sabe; surge sempre do mesmo lado, mas, ninguém nunca o viu em lugar algum. O homem também não sabe o que ele escreve, pois o faz com uma letra estranha, numa escrita quase indecifrável; ademais, conforme vaticinou, afastando minha curiosidade de cronista, não costuma bisbilhotar escritos alheios.

Continuarei à janela, pode ser que apareça uma hora destas; assente-se na mesma cadeira e, se a coragem não faltar, pode ser que eu vá ao boteco, peça um conhaque com licor de pequi e converse algumas amenidades com o velho. Talvez até leia os seus escritos, onde ele fale de um homem que fica sempre à janela, olhando os transeuntes, inventando personagens e que, numa tarde de céu anuviado, escreveu, por acaso, sobre um lorde inglês que nunca existiu, só pra inglês ler.  

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

CAMINHO

Um pontinho amarelo no fim da linha.
Linha tortuosa
Incerta
Que num instante se acabará.

Talvez nunca se chegue ao ponto
Ou talvez
Nem ponto qualquer
Nos há
No ar
Em algum lugar.

E assim,
Na incerteza de cada instante
Passado e futuro
Destroem
Todo o presente
Sempre ausente
A me costurar.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

PALAVRAS À TOA


Numa rede social, dois amigos de longa data, partindo de um brilhante desenho feito pelo primeiro, teclavam a respeito dos prédios históricos corjesuenses. Tristemente, falavam dos descasos sofridos pelas edificações através dos tempos, com o segundo afirmando que algumas construções da centenária cidade em nada ficavam a dever às cidades históricas mineiras, devendo, portanto, ser protegidas pelos governantes e munícipes, coisa que, deveras, não acontece.

            Concordando plenamente com ambos, desliguei os dados móveis do aparelho celular e, deitado na velha rede, olhando um sabiá que descansava sobre o biribazeiro, enquanto os cachorros corriam de um lado para outro atrás de uma bolinha esverdeada, já desbotada pelo tempo e toda marcada pelos dentes dos tantos cachorros que a morderam, abri um livro de Fernando Sabino e iniciei sua leitura.

            Abri o livro aleatoriamente, dando numa Crônica em que o, ainda jovem, autor belorizontino escrevia ao modernista Mário de Andrade, agradecendo-o pelos conselhos que o havia dado sobre a arte de escrever; demonstrando, assim, o remetente, o seu respeito ao já famoso expoente da nossa Literatura, com quem divide as suas dúvidas, angústias e anseios, confiando, verdadeiramente, na sua sabedoria.

            Não continuei a leitura. Fechei o livro, descansei os olhos e relembrei as falas tecladas pelos amigos. Eles tinham razão, a nossa história precisa ser preservada, protegida por todos nós. Pena que, ao contrário de Sabino, ainda não tenhamos a consciência de que precisamos da experiência para construir nossos caminhos, pelos exemplos, pelos ensinamentos, pela segurança que o passado nos traz.

            É comum que todos os governantes sempre falem em preservar a Cultura do lugar, assim como é senso comum que todos nós devemos respeitar os mais velhos. Tudo palavras jogadas ao léu. Somos seres de palavras vãs e ações mínimas. Por isso, viajamos das nossas plagas para visitar casarões antigos em cidades históricas; vamos à Bahia para tirarmos fotos onde os portugueses primeiro pisaram a nova terra; ouvimos os famosos senhores que aparecem contando coisas à toa na televisão, compartilhamos palavras tolas de sábios senhores das redes sociais, mas, invariavelmente, quase nunca paramos para observar as belezas e os ensinamentos que nos cercam, pois achamos que tudo isso são meras piegas velharias.

            O sono já me abatia quase por inteiro, quando o celular caiu da minha mão, dando com a cara no chão úmido pela água da chuva, que escorrera ainda de madrugada. Despertei de súbito, peguei-o, limpei a tela e liguei os dados móveis novamente. Assim como quase todos os meus contemporâneos, estou viciado em redes sociais. A tela se abriu e uma linda imagem da lagoa surgiu. Curti a foto de algum amigo virtual e pensei em ler alguns dos muitos comentários que seguiam; mas, o sono da tarde me pesava os olhos; ademais, num breve rastreamento, pude visualizar que nenhum daqueles comentaristas era deste lugar. Tudo gente de outras paragens. Fechei os olhos e dormi.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

OS SONHOS DE PEDRO


Elismar Santos

Era sempre a mesma coisa: levantava, tomava o café e assentava-se debaixo da mangueira. Durante todo o dia ficava lá, pensando, criando, imaginando as muitas vidas que um dia haveria de ter. E Pedro sonhava em ser aviador, bombeiro, paraquedista, construtor de naves espaciais, lenhador de árvores nórdicas. Durante todo o dia ele sonhava e, à noite, quando o cansaço batia e os olhos, pesados, se fechavam, vivia todas as suas vidas em atropelo.

 A mãe de Pedro, empregada doméstica na casa de uma família rica, saía antes que o dia clareasse. O pai, poeta sem recursos e estivador aposentado, passava todo o dia no cais, perambulando pelos botecos, escrevendo poemas em guardanapos, jogando Porrinha com outros desocupados, mexendo com as meninas que olhavam os marinheiros em busca de maridos potenciais.

A mãe deixava o almoço sobre o fogão: Arroz, Feijão e um naco de carne seca. O pai nunca chegava para o almoço. Comia qualquer coisa pelas ruas e, à noite, quando o menino já estava dormindo, chegava embriagado e dava umas sovas na mulher, para que ela soubesse quem mandava naquela casa. Pedro, chorando, via, por debaixo da coberta, toda aquela cena. E imaginava que um dia haveria de acabar com tudo aquilo.

O menino já frequentara a escola, durante um tempo; mas ela era muito longe. Não tinha dinheiro para o ônibus e alguém tinha que olhar a casa; no subúrbio todo cuidado é sempre pouco. A mangueira ficava bem de frente a casa. Ele trancava a porta dos fundos, fechava as janelas e, enquanto sonhava, olhava a casa velha, de adobe, pequenina, bem à beira do barranco. Então, fechava os olhos e construía, de um fôlego só, uma casa enorme, com piscina e um monte de empregados. E ele era feliz sonhando.

Um dia, enquanto a mãe preparava o almoço na casa dos patrões e o pai escrevia mais um poema, que ninguém leria, num pequeno guardanapo fedido de cerveja, Pedro fechou as janelas, trancou a porta e saiu. Não se assentou debaixo da mangueira e nem sonhou seus velhos sonhos. Caminhou lentamente, sem olhar para trás. Um dia ainda haveria de voltar. Levaria a mãe consigo. Iam morar numa casa grande. Longe do pai e daquele barranco.