segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

DINA E CANDINHA (de volta ao Romance)

Dina tem ensinado Candinha fazer coisas diferentes na cozinha. Ontem, pela primeira vez, comi um bolo de mandioca com queijo, o qual a mulher de Tonico chama de João Deitado. É bastante gostoso, apesar de, talvez pela imperícia da minha esposa, vez ou outra eu ter encontrado pedaços de palha de bananeira dentro do bolo, sendo que a mesma deveria apenas envolvê-lo.

As duas passam boa parte do dia confabulando junto ao fogão de lenha, fazendo bolos, biscoitos, doces e um monte de novidades, as quais me cabe experimentar. Os meninos de Tonico passaram a tomar conta das coisas em casa, enquanto o pobre homem prepara o almoço entre os deveres do Sarará.

Não tenho cobrado maiores esforços do Caseiro e, com a tranquilidade que estamos gozando, ordenei aos meus homens que ajudem nas lidas com o gado e os outros serviços de maior monta. A verdade é que as lembranças e os temores com o Arnaldo vão aos poucos desaparecendo da minha mente, trazendo de volta a confiança que tinha desaparecido.

Hoje me peguei observando Dina e Candinha encostadas ao fogão. Ambas preparavam o almoço, enquanto Maria varria as folhas do quintal. A minha esposa não tinha se dado conta de que eu estava por perto e conversava amenidades. A esposa de Tonico havia percebido a minha presença e, pode ser apenas impressão, sorria com o canto da boca, enquanto parecia me olhar de soslaio.

Preferi não ficar por muito tempo na cozinha. Tirei o pigarro da garganta a fim de chamar a atenção e as mulheres me olharam com caras de espanto; Candinha veio, deu-me um beijo e voltou para os seus afazeres. Peguei a garrafa de pinga no armário e fui para a varanda, enquanto Dina continuava a me olhar. Antes de sair, virei-me uma última vez e ela me pareceu piscar um dos olhos. O Tonico é mesmo um homem de sorte.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

O MENINO NO RIACHO


O menino vinha correndo que nem doido e pulava na água. Tchibum! Sumia por um longo tempo para depois reaparecer quase na outra margem do riacho. Saía pelo outro lado, ia até os pés de pau lá em cima e vinha correndo para pular de novo.

- Menino doido, toma cuidado na hora de pular!

O menino não ouvia os pedidos da avó. Apenas se divertia com aquilo, correndo e pulando na água; mergulhando de um lado e saindo do outro, debaixo daquele sol escaldante da tarde.

Leonardo, deitado na grama, olhava o filho pulando no riacho e lembrava a sua infância. O menino era ele de novo, com as mesmas estrepolias, deixando a avó doida. Ele também ficava correndo de um lado para outro, pulando, mergulhando, pescando piabas com a camiseta servindo de rede, enquanto a mãe lavava roupas na pedra lá em cima.

- Leandro, escuta a sua avó; toma cuidado e não pula de ponta, nesse canto aí tem muita pedra!

O menino vinha correndo, dava um salto mortal, virava no ar e caía em pé, até afundar por completo. Se a mãe dele estivesse junto, já tinha ficado doida; tinha xingado o menino, pegado pelo braço e colocado de castigo, sentado junto dela.

- Amanhã o moleque tem que ir embora, né, Leonardo?

Ele não respondeu. Ficou olhando por um longo tempo para o menino correndo e pulando no riacho. O menino tinha o sorriso de Beatriz. Que Deus o livrasse, que não tivesse o coração igual ao dela: um coração de pedra.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

TARDELLI JÁ ESTÁ ASSINADO COM O GALO

-Tardelli já está assinado com o Galo.

Tuca era sonhador, por isso, nem dei atenção. O cara era um verdadeiro nostálgico, sempre sonhando com a desaposentadoria do Gaúcho, a volta do Bernard, o retorno glorioso do Cuca. Sobre o Tardelli falava quase que diariamente.

- Agora não é ilusão, professor. Quem me disse foi o Rafael, e você sabe que ele é fonte quente!

- Sei! Do mesmo jeito, ele tinha dito a você que o Bernard voltaria ao Galo... - A minha vontade era pular na goela do sujeito. Mentir sobre o Bernard tudo bem; mas sobre o Tardelão eu não aceitava.

- Eu não menti sobre o Alegria, professor.  O negócio foi que deu bode, uai. O Rafael me disse depois, um diretor fez a cabeça do empresário do menino, e ele preferiu deixá-lo um pouco mais na Europa. Mas ele ainda vem. Ele ainda vem.

Eu já ia virando as costas para não dar uns sopapos no mentiroso, quando ele segurou o meu braço e disse confiante:

- Pode anotar e depois me cobra. O Diego já assinou; foi um pedido do Duda. O técnico já até esboçou o time com ele no lugar de Cazares, que, também já está certo, vai para o Palmeiras.

- Mas ele nem é um 10, como vai ficar no lugar de Cazares?!

Tuca não se intimidou. Olhou fixamente nos meus olhos e continuou:

- Eu não disse que nele será como o Cazares! Apenas ficará no lugar dele, ocupando o posto de medalhão do time. Tardelli vestirá a 10, mas não terá posição fixa e, assim como na Libertadores, flutuará da esquerda para a direita, trocando posição com o Chará, que não vai embora, tabelando com Lucas Lima, que fará as vezes do Gaúcho; municiando Pratto, que também voltará ao Galo...

Minha paciência chegou ao fim de vez. Virei as costas e saí, enquanto o meu amigo, já aos gritos, vaticinava:

- Pode anotar, esse vai ser o maior time que o Galo já terá montado. Ainda mais depois que o Cebolinha também chegar. Pode perguntar pro Rafael!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

PAPAI NOEL

- Mãe, Papai Noel e existe?

- Claro que existe, meu filho. É um velhinho de barba branca e roupa vermelha, que entra pelas chaminés nas noites de Natal e deixa presentes para as crianças boazinhas.

- Mas e quando não tem chaminé, ele não entra?

- Entra pela janela, uai... Na verdade, ele, se quiser, pode até diminuir de tamanho, igual ao Chapolin quando toma a pílula para encolher, lembra? Daí ele entra por debaixo da porta.

- Então a gente tem que tirar as ratoeiras, ne, mãe? Pois aqui não tem chaminé.

- É mesmo...

- Mãe, e por que ele vem de trenó? O mundo é muito grande pra ele ir de casa em casa, é um monte de crianças pra uma noite só.

- Ele é mágico, meu filho. É como se ele fizesse o tempo parar, até terminar de distribuir os presentes. Daí, ele destrava o relógio e tudo volta ao normal.

- Mas, mãe, se o tempo para e ninguém vê o Papai Noel, como a gente sabe que ele é um velhinho de barba branca e roupa vermelha?

- Porque, de vez em quando, ele toca em algumas crianças, aquelas que foram realmente boazinhas, só pra elas o virem e abraçarem, e essas crianças contam para as outras como ele é, entendeu?

- Entendi. Mas, mãe, minha professora de Catecismo disse que Papai Noel não existe e que no dia vinte e cinco a gente tem que comemorar o nascimento de Jesus...

- Religião é muito complicado, meu filho. Vamos dormir, que já está tarde. Senão o Papai Noel não vem.

domingo, 22 de dezembro de 2019

CRENÇAS


Fazia uma semana que o menino estava de cama, meio perrengado, sem querer comer, amarelo e emagrecendo a olhos vistos.

- Tem que levar o menino pra benzer, Manel. Com certeza, isso é quebranto.

Secando-se na toalha encardida, ele pensava o mesmo. Era até bom, pois aproveitaria e se benzeria da espinhela. Fazia tempo que as costas estavam doendo, desde que tinha ajudado Chiquim tirar o forno de carvão; e tudo por uma mixaria.

- Amanhã. Depois que eu tirar o leite, levo o menino lá. Aproveito e peço Sá Luça pra me benzer também. Já não estou aguentando a dor nas costas.

- A gente tem que ir na carroça. Eu também preciso me benzer. Arrumei um cobreiro aqui no braço, olha. É culpa dessas lagartixas; com certeza, uma dessas passou em cima de mim enquanto a gente dormia. Já não aguento mais esse tanto de bicho aqui em casa.

Seria melhor que ela ficasse e preparasse o almoço. Mesmo que saíssem de manhãzinha, só chegariam de volta depois das dez, muito tempo depois da hora de comer. Mas, não teria coragem de falar com Maria. O jeito era ir  o mais rápido que a carroça pudesse e voltar com a barriga roncando de fome.

À noite, enquanto o menino dormia no canto da cama com a mãe admirando a sua beleza (mesmo perrengado, ele era muito bonito. Maria tinha razão, ele devia estar com quebranto), Manel sentia as costas doendo, enquanto duas lagartixas brigavam por causa de uma mariposa que descansava na parede.

- A chuva não demora, Maria. As mariposas já estão começando a aparecer.

Maria não respondeu; apenas deu um beijo no menino, que, graças a Deus, não estava com febre; coçou o braço cheio de botucos e fechou os olhos. Manel não conseguiria dormir tão cedo e se contentava em ver as lagartixas correndo de um canto a outro da parede.

sábado, 21 de dezembro de 2019

ESPERANÇA

- Oou, Princesa! Passa, Malhada! Passa, Esperança... Oou! 

Elas seguiam, uma atrás da outra; entravam no curral e ele fechava o colchete. O banquinho ficava pendurado de lado, próximo ao jiral onde o balde descansava de cabeça para baixo.

- Passa, Esperança. Ou, ou, ou! - alisava a cabeça da bezerra e soltava-a na manga. 

Princesa e Malhada esperavam preguiçosas pela ordenha, enquanto comiam a ração que Luís tinha depositado no coxo. Era sempre a mesma rotina, que elas já sabiam de cor e salteado.

- Vem, Malhada; encosta aqui. - E ela deixava a comida, vinha com cara de quem tinha acabado de acordar, olhava para Princesa e se encostava junto ao banco, que já estava em seu devido lugar. - Você é uma boa menina, Malhada! - E alisava a barriga dela antes de assentar.

Luis assoviava, enquanto lavava as tetas da vaca; ajeitava o banquinho para mais perto e sincronizava o assovio ao ritmo do leite batendo no fundo do balde de alumínio. Malhada também se ajeitava e ficava ouvindo a música que Luís assoviava junto com o leite que saía.

Depois, era Princesa quem se achegava. E todo o processo recomeçava. Esperança ficava junto da cerca, esperando pelas duas mães. Não queria mamar, queria mesmo era brincar, andar pelo pasto de fora, beber água na barragem lá embaixo.

 Daqui algum tempo, seria ela de quem Luís tiraria o leite e outra bezerrinha estaria no seu lugar, esperando, impaciente, que ela saísse do curral.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

INFÂNCIA

O povoado se descortinava à frente. O cavalo ia preguiçoso, balançando o rabo lentamente, enquanto o menino quase cochilava abraçado ao pai. As pedrinhas soltas eram jogadas para trás e, ao bater de encontro às outras, soltavam faíscas, em pleno sol matutino.

O mato sujo de poeira era a única paisagem que o menino avistava. Fazia tempo que não chovia e o trânsito dos Jipes, do caminhão do leite e da jardineira que ia do Pitão para Coração fazia com que os pequenos pés de paus ficassem com a cor amarronzada. E nas estradinhas feitas pelas joaninhas, besouros e lagartas, o menino via desenhos de toda espécie em cada folha.

O pai estancava o cavalo junto ao mataburros; abria o colchete e passava. Enquanto, depois de passar o arame no mourão, o velho preparava a palha para o cigarro, o menino olhava o povoado, que já aparecia nítido: umas poucas casinhas velhas, com suas pequenas janelas de madeira e portas para a rua. Ao longe era possível ver a torre da igreja por entre as mangueiras e os coqueiros.

Um homem passava rápido e gritava "Opa!"; Cachorros latiam correndo nas ruas empoeiradas; mulheres estendiam roupas nas cercas de arame. Na Gameleira, o pai amarrava o cavalo num poste de madeira e seguia para a venda. Primeiro comprariam as coisas de comer, o fumo e a pinga; depois, já sem grandes obrigações, viriam a carne, sabão e as miudezas que a mulher sempre pedia.

O menino sentava-se no banco de madeira e punha-se a olhar os movimentos. Já não cochilava; apenas esperava paciente pela hora que iriam à padaria. Era sempre assim: depois das compras, o pai tomava um trago; pegavam o cavalo e iam comprar uma bisnaga de pão. Era um pão duro e sem gosto, que o pai fazia questão de levar para comer molhado no café. Nunca se demoravam muito e, ao sair, o pai sempre lhe dava um pirulito, passava a mão na sua cabeça e sorria. E ele sentia que, de fato, era um menino feliz .

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

SALIM

Salim organizava os relógios todos alinhados no balcão de vidro. Eram relógios de pulso dos mais variados estilos e preços: dourados, prateados, de plástico, de borracha e alguns que nem mesmo ele sabia de que materiais eram feitos. 

Sobre as prateleiras ficavam os maiores; eram relógios de parede com vários retratos de santos, de famosos, de paisagens bonitas; relógios que mexiam o pêndulo de um lado para outro infinitamente, num eterno tic-tac, tic-tac, tic-tac.

As bancas, do lado de fora do balcão encostadas nas paredes deixando apenas um pequeno corredor que cabia uma pessoa de cada vez, mostravam cintos, brinquedos, bonés e algumas bugigangas de pouca ou nenhuma serventia.

A esposa de Salim passava o dia todo limpando o balcão, as prateleiras, as bancas, passando pano no chão, assoprando os relógios; enquanto ele regulava, um a um, todos os que estavam no balcão de vidro; depois passava aos da prateleira e fazia a mesma cerimônia; organizava as coisas nas bancas, para, em seguida, começar tudo de novo.

Às sete da manhã, respeitando os dias santos, o casal abria a pequena loja próximo à praça. Durante todo o dia, durante quase trinta anos, cumpriram a mesma rotina, até que, às dezoito horas, quando o sino da matriz tocava o Ângelos, abaixavam as portas e enfunavam num pequena casa na Baixa dos Guedes.

Depois de muitos anos, restaram apenas as lembranças de Salim e a esposa. Há muito, a pequena loja dera lugar a uma loja de celulares, capinhas e acessórios; enquanto a antiga casa do casal foi derrubada pela prefeitura, transformando-se num grande terreno baldio, ainda com a promessa de se tornar numa pracinha  com academia de ginástica e um bonito Jardim.

Diariamente, às dezoito horas, o sino da igreja ainda toca o Ângelos, talvez à espera de que o casal volte e abaixe novamente as portas, que já não se abrem tão cerimoniosamente como antes.

domingo, 15 de dezembro de 2019

PARTIDA

A esposa nunca quisera ficar na roça. Viera a contragosto, trazida na garupa da mula, chorando abraçada às suas costas . Ele sabia da estima que ela lhe tinha. Não era amor o que sentia; antes, era somente gratidão por tê-la tirado das amarras dos pais.

Começaram a se olhar numa noite de festa, na casa de Odorico. Dançaram uma única vez e ele já estava apaixonado. Agora sabia, ela não o amava, mas tinha visto, àquela hora, a sua grande chance. Ele era trabalhador e tinha boa aparência; os pais não se oporiam a esta união.

Casaram-se em pouco tempo. Ele trabalhava numa carvoaria enorme e teria serviço para longo tempo; por isso, combinaram de morar junto dos fornos, num ranchinho mal acabado, com fogão de lenha e um velho jiral, onde dormiriam felizes, aconchegados. Enquanto isso, ele reuniria o dinheiro necessário e lhe daria um sítio, com cavalos e galinhas, uma casa enorme e a vida que ela sempre quisera.

Ela não tivera paciência e partira. Era uma madrugada de lua alta. Ele dormia e sonhava. E no seu sonho, ela era uma princesa, morava num palácio enorme e esperava pelo príncipe encantado. O cavalo branco parava de frente ao palácio; ela descia pelas escadas; montava na garupa e iam, ambos sorridentes, pela estrada , até sumirem no horizonte. Enquanto isso, ele olhava, todo sujo de carvão, com os olhos cheios de lágrimas.

Ela abriu a porta devagar. Montou no cavalo; abraçou-se ao seu amado e se foi. Ao longe, antes de virar a curva, ainda olharam para trás. No ranchinho, apenas o silêncio da madrugada e os sonhos. Ela sentia-se como se o tivesse traindo, mas o amor falava mais alto. E, por isso, sorria.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

LEMBRANÇAS

Os carros desciam em alta velocidade, enquanto as mulheres subiam pela rua puxando os meninos pela mão. Do alto do prédio, ele observava o amanhecer. Ainda não eram sete horas, mas a cidade já estava em movimento.

Na próxima semana tudo estaria mais calmo. As aulas estavam acabando, as mães poderiam dormir um pouco mais e as crianças viveriam, por quase dois meses, o tédio de ficar trancafiadas dentro de casa.

O café estava forte, assim como ele gostava; a broa esfarelava na boca, enquanto as lembranças vinham à sua mente. No seu tempo de criança tudo era bem melhor. E isso não era choro de algum nostálgico. Ao contrário, era um homem cheio de modernidades, que sempre cria no futuro e contava milhões de planos à frente.

A cidade não tinha tantos carros; os ladrõezinhos eram conhecidos, e se satisfaziam em roubar galinhas ou coisas de pouca monta; as pessoas não andavam tão apressadas e as crianças não se entediavam tão facilmente.

As férias prologavam-se por quase dois meses, enquanto ele e os amigos corriam pelas ruas brincando de polícia e ladrão; jogavam bola em todos os peladores de cidade; apertavam as campanhias das casas das ruas de baixo, só para saírem em desabalada carreira, enquanto os donos saíam com seus incontáveis impropérios.

À noite, sentavam-se todos os meninos na calçada, à porta de casa, para contarem histórias de terror; brincarem de cabra-cega, pique-esconde ou simplesmente para contar as estrelas, sob o grande risco de contraírem enormes verrugas.

Um carro parou na porta e buzinou. Os homens já desciam para o serviço, contando piadas, assoviando as mocinhas que voltavam pra casa com sacolas de pão, rindo das mulheres que lutavam contra o vento para segurarem os vestidos que teimavam em voar. 

A namorada desceu do carro, olhou para cima e fez sinal de que já estavam atrasados. Ele acabou de tomar, rapidamente, o seu café; pôs o copo sobre a pia e desceu. Ao fechar a porta, ainda pôde ver, de relance, que um menino feliz relembrava, olhando para a rua, toda uma infância de liberdade.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

CAETANA

O cavalo seguia com dificuldade, enquanto Alfredo tentava se manter sobre a sela. A água descia forte lá de cima, passava sobre a calçada da casa amarela e vinha bater violentamente contra o meio-fio da rotatória. Depois, ia rua abaixo até o pontião, onde se juntava à água da lagoa.

O cavaleiro tentava não olhar para o chão, fixando os olhos ora na sela ora no horizonte. O estômago vazio doía; as mãos tremiam e a boca estava seca. Deveria ter trazido uma garrafinha de pinga, mas, desde que Caetana o fizera dormir no paiol, nunca mais teve coragem de embebedar na sua frente.

Talvez devesse mesmo ter ficado no boteco, esperando que a chuva passasse. Mas, daí, teria que voltar à noite, com o perigo das onças no Guará, ainda mais bêbado, tendo que aguentar depois as aporrinhações da esposa. O melhor mesmo era ir embora debaixo da chuva, com medo dos relâmpagos e dos trovões.

Parou debaixo da mangueira e, olhando a lagoa, tirou o fumo do embornal e pôs sobre a palma da mão esquerda; pegou uma palha e começou a alisar com o canivete; cortou-a como que cheio de arte e pôs-se a picar o fumo. A mãe sempre dissera para não ficar debaixo de árvore em dias de chuva, ainda mais com raios. Tinha que fazer um pito, antes de seguir e, ali, apenas alguns poucos pingos caíam sobre o chapéu de palha.

As lembranças vinham à sua mente, enquanto fumava o roleiro. Caetana era uma menina bonita, tímida e cheia crenças, mas a vida a tinha transformado naquela cobra sem coração. Pobre dos meninos, ainda bem que já estavam todos crescidos. Logo as meninas casariam e os meninos sairiam para o mundo. Daí também ele sumiria, e Caetana ia ver o quanto ele fazia falta na vidinha dela.

Jogou a bituca no chão. Pisou forte para apagar a brasa que restava; montou no cavalo e seguiu, com a boca seca e cabeça doendo. Um raio cortou o céu e depois veio o trovão. Já vai, Caetana! Já vai!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

SONHOS

A vontade era de mandar o coronel catar coquinho. Onde já se viu, um voto em troca de um gabiru! Só não o fez por causa da esposa; se não tivesse se controlado, a pobrezinha ia perder o seu emprego.

Luis sentou-se no degrau da porta e ficou olhando para o horizonte. Se tivesse pensado melhor, tinha ido embora pra São Paulo, junto com os irmãos. Não é que eles estivessem ricos, mas estavam todos remediados. Vez ou outra mandavam cartas contando as novidades e pedindo para mandarem os meninos, assim que eles se dessem por gente e aguentassem trabalhar.

O mais velho não tardaria partir. Pegaria a jardineira e ia ter com os tios. A esposa já estava ciente disso, que se acostumasse logo com a ideia de ficar longe do filho. Sofrer nos longes da cidade grande era melhor do que ficar padecendo nas garras do coronel.

Agora teria que votar no candidato do velho. O santinho do desgraçado estava guardado na gaveta, junto do martelinho de quebrar cristal e da caixinha com o baralho. As eleições não demoravam e era preciso só colocar o papel dentro da urna. O homem tinha dito que o santinho era só pra  saber em quem estaria votando; a cédula, Borjão lhe entregaria na boca da urna, sem que ninguém visse.

Podia até ser que ninguém visse, mas todo mundo sabia. Era sempre a mesma coisa, todo mundo reclamava, mas acabava votando no candidato do coronel. Quem não era seu empregado, ganhava um bezerro; os outros eram obrigados pelo risco do serviço ou , então, pelas indicações feitas ao paço municipal.

Luís respirava fundo e imaginava o futuro, quando tudo seria diferente. Com certeza, os netos seriam homens livres, estudados e sem qualquer amarra, e, mesmo na roça, todo mundo poderia escolher em quem votar, sem a obrigação do emprego, da indicação, da permuta em bicho, comida ou dinheiro. Por enquanto, só lhe restava engolir a raiva e sonhar, enquanto, no radinho da cozinha, Zé Bétio tocava uma bonita canção.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

PEDRELINA (Um hiato no Romance)

Sentada sobre o fogão, Pedrelina limpava os dentes com o último naco de fumo, que passava nas cinzas que ela havia puxado com um pedaço de brasa. A vontade de tomar um trago era quase incontrolável, mas tinha prometido a Teodoro que não beberia durante a Quaresma, ainda mais depois da vergonha que tinha passado da última vez, quando assistiam ao jogo  no campo de Paulão e o marido teve que levá-la para casa deitada no jiral da carroça.

Teodoro também não estava bebendo e isso a fazia manter a promessa. Às vezes, quando ele estava na roça, limpando os matos ou matando as pragas do feijão, ela pensava em beber escondido; mas se tomasse um gole, já sabia, não conseguiria mais parar; por isso, o melhor era não cair na tentação.

O marido estava deitado, fumando o cigarro de palha, que tinha acabado de acender com a binga. No outro dia, teria que ir ao Pitinha; precisava comprar fumo, rapadura e querosene pra lamparina. Era pegar com Deus para que a chuva continuasse caindo, senão o feijão não vingaria e até isso teria que comprar na venda.

A luz da lamparina mexia de  um lado para outro, formando desenhos no branco da parede. Enquanto pensava, vestido apenas com um short Adidas que tinha comprado na Lapa, na única vez que tinham viajado de Pau de Arara numa viagem tão demorada (Foi mais de uma semana, dormindo na beira da estrada, comendo farofa, biscoito e tomando café ou pinga), Teodoro imaginava coisas.

As sombras formavam bichos, ferramentas de trabalho, mulheres bonitas, que ele imaginava saltando da parede e deitando ao seu lado. Depois se continha e prestava atenção para ver se Pedrelina estava vindo. Mulher valente da peste; se o pegasse pensando naquilo, daria logo um fim na sua história.

Alheia aos pensamentos do marido, Pedrelina cochilava sobre o fogão, com o fumo cheio de cinzas sujando os dentes. De repente, assustou-se com o crepitar  de uma brasa; levantou-se do fogão; deu uma cusparada para tirar o gosto da boca; pegou um copo d'água no pote; gargulejou e foi dormir. No caminho até o quarto, deu uma olhada nas crianças, que dormiam numa rede no chão da sala e pensou: se não fosse a cachaça, nada disso existiria.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

DINA

Hoje estive observando a mulher do Tonico. É já uma senhora, talvez com seus quarenta e poucos anos, maltratada pela lida na roça, com o rosto sofrido, pele queimada, mas ainda bonita de corpo. Talvez tenha sido uma bela moça e, tivesse nascido e se criado na capital, encheria os olhos dos moços que passeavam pela Afonso Pena nos fins de tarde, procurando pelos brotinhos com seus rostinhos meigos e corpos definidos.

O Tonico não fizera uma má escolha. Dina - Leodina - é uma mulher recatada, que vive apenas para o marido e os filhos . Dizem que Tonico casou com ela quando ambos já contavam mais de trinta e, por isso, os filhos saíram mirrados, fraquinhos e pouco inteligentes.

Sentado na varanda, vejo Dina passando de um lado para outro. Mal cumprimenta com um balançar de cabeça; tem os olhos sempre baixos e o andar preguiçoso. Vai até a horta e pega sempre as mesmas coisas: folhinhas verdes, abóbora, maxixe e pimentão; desce até a cacimba e pega água para o almoço e fica o resto do dia enfurnada, cuidando dos afazeres domésticos.

Ultimamente, tem puxado assuntos com Candinha. Primeiro foi a minha esposa quem a tinha procurado para consertar umas roupas velhas, que estavam precisando de pequenos reparos e, por fim, as duas começaram a se aproximar. Isto não me preocupa, e já penso mesmo em chamar a mulher para trabalhar dentro de casa em companhia de Candinha.

Tonico não se oporá, será mais um ganho para a família. Com o tempo, eles poderão comprar o sítio que tanto querem ou, quem sabe, pode ser que eu deixe-os ficar num cantinho do Sarará, daí o dinheiro servirá para o futuro dos moleques. Pode ser que algum deles se torne alguém na vida.


Enquanto beberico a minha pinga com remédio, penso na família de Tonico; talvez, um dia, Candinha e eu também formemos uma família grande, com um monte de crianças correndo pela casa. Talvez.

domingo, 1 de dezembro de 2019

O SONHO DE REIS

Acho que fiquei cismado com a morte dos filhos de Tião e, por isso, essa noite me foi cheia de pesadelos. Candinha assustou-se com os meus berros e, depois de me acordar, foi até a cozinha fazer um chá de camomila, pois eu tremia a e suava feito louco. Depois me abraçou e, sem perguntar com o que eu havia sonhado, acariciou meus cabelos até que eu dormisse novamente.

Era uma manhã de sol. Candinha já estava na cozinha preparando o café adoçado com rapadura quando me levantei. Fiz minhas ablações e sentei-me na varanda, de onde observava o gado pastando na manga em frente. Tonico já havia tirado o leite e fazia os queijos na casinha dos fundos, enquanto o seu menino mais novo brincava de campear os cachorros no pasto.

A minha esposa do Arnaldo trouxera o café com broas de milho e cabos de machado; assentara-se ao meu lado e começou a bebericar, enquanto me falava amenidades. Conversamos por um tempo, até que a esposa do Tonico me viera chamar; disse que o marido estava precisando de coalho para terminar os queijos e que se demorasse perderia toda a produção do dia.

Achei estranho que logo a esposa me viesse falar. A dona de Tonico quase nunca saía de casa, sempre era o marido quem falava por ela; era uma mulher arredia, avessa às socializacões. Ainda assim, não atinei que pudesse estar tramando algo. Antes que eu a indagasse, afirmou que o marido estava às voltas com o leite, lutando para que não o perdesse e, por isso, tinha mandado-a ter-se comigo.

Os três homens ainda estavam dormindo, pois ficavam rondando pelo Sarará durante toda a noite, vigiando a chegada de estranhos. Pensei acordá-los, mas achei que não seria de bom tom fazê-lo, além disso, ainda era bem cedo e ninguém haveria de estar de tocaia àquela hora. 

Desci até as baias, arrumei o cavalo e desci para o Pitinha. Candinha me olhava da varanda, com  sorriso nos lábios, enquanto a esposa do Tonico parecia tensa ao seu lado. Não me demoraria, compraria o coalho e logo estaria de volta em casa. Minha esposa não tinha por quê se preocupar.

Talvez eu tenha andado um quilômetro ou pouco mais. A estrada estava silenciosa, sem nem ao menos os pássaros cantarem. Não havia vento àquela hora; contrário aos dias anteriores, seria um dia de sol forte, bom para as roças darem uma respirada. Um alívio para o pasto e um descanso para os bichos.

Eu assobiava uma música qualquer, quando, de repente, um tiro. Tudo parecia rodar e, sem ter como me segurar, caí bruscamente do cavalo, que saía em disparada de volta ao Sarará. Um homem soltou um grunhido, fazendo o bicho estancar; amarrou-o num pequizeiro e acariciou a sua crina. Depois veio caminhando lentamente para o meu lado, com uma arma em punho:

- Bom dia, Doutor Reis. Sentiu saudades de mim? Soube que estava me procurando, depois que os filhos de Tião tentaram me matar. E Candinha, tem cuidado bem dela?

Aquela voz não me era estranha. A vista estava embassada, pois eu havia caído com a cara no chão. Aquele só podia ser o Arnaldo, que tinha vindo se vingar. Tentei dizer alguma coisa, mas a voz não saía; esforcei para me levantar, mas não tinha forças. Resignei-me ao meu fim e comecei a rezar silenciosamente, lembrando-me de Candinha sorrindo na varanda.

- Não se preocupe, Doutor. Isto não vai demorar. O senhor vai logo se encontrar com o seus dois capangas; Joaquim e Luciovânio já devem estar esperando pela sua chegada. Tonico deu um jeito nos seus homens e, quanto à Candinha, pode deixar que darei a ela um fim digno, assim como aquele que ela queria e eu não deixei. 

O homem se benzeu, olhou para o céu, empunhou a arma novamente e atirou. Foi quando Candinha me acordou. Meu coração parecia saltar pela boca e uma sensação estranha tomava o meu corpo. Era como se aquilo tivesse mesmo acontecido.

ARNALDO E A MORTE DOS FILHOS DE TIÃO

Joaquim e Luciovânio estavam trabalhando numa fazenda em Baluarte, fazendo carvão para um fazendeiro recém-chegado da capital. Dizem que é funcionário  público aposentado, parece que trabalhava no INAMPS, ou órgão parecido.

De acordo com Tonico, que trouxera as informações do Pitão, onde tinha ido, a meu mando, procurar homens fortes para trabalhar e que tivessem coragem de atirar, o homem queria investir boa parte do dinheiro que acumulara no alto cargo do funcionalismo público na criação de gado leiteiro e, para isso, precisaria desmatar quase toda a terra que havia comprado. Por isso, tinha chamado os filhos de Tião de Noca.

Os irmãos, conforme palavras de Tonico, tinham contratado os serviços de mais três homens no Pitão, carvoeiros velhos, cachaceiros inveterados. Assim, o serviço andava sem muita pressa, entre bebidas, cigarros e mulheres. Seu Rodrigues, o dono da fazenda, também não se aperreava; andava às voltas com uma separação, pois, dizem, havia encontrado a mulher na cama com o porteiro do apartamento onde morava, num dia em que tinha voltado mais cedo do serviço.

Parece que o fatídico acontecimento com os dois irmãos se dera num sábado ou domingo, quando os três homens estariam de folga nas suas casas, para reverem as mulheres e os filhos. Ainda segundo Tonico, os homens na praça da igreja disseram que os dois estariam bêbados e que ao acenderem o fogão para esquentar um tiragosto acabaram por adormecer; o fogo teria se alastrado rapidamente, pois o rancho era todo feito de paus e palhas, além do querosene estocado para as lamparinas.

Essa, para Tonico, seria a versão mais plausível que havia. Existiam outras, que andavam de boca em boca, dizendo que teriam sido mortos por algum marido traído; que Joaquim teria matado o irmão, depois de um porre de cachaça, por causa de um último pedaço de carne e, depois, colocado fogo no rancho, matando-se no meio das chamas; que um raio tinha caído no barraco e matado ambos no fogaréu.

Ninguém se lembrou do meu amigo Arnaldo. Todos acreditam que ele esteja mesmo morto, já não havendo nem mesmo os ossos do desgraçado. Mas nada me tira da cabeça que pode ter sido ele quem  matou os filhos de Tião. Os irmãos eram homens vividos, espertos e demasiadamente unidos, não fariam qualquer besteira, nem brigariam entre si. Por via das dúvidas, pedi aos homens para ficarem alertas e, caso apareça algum desconhecido no Sarará, tasquem fogo no diabo.

Apesar de todas as precauções, confesso o meu medo; por isso, tenho evitado sair da fazenda. No Pitinha, só vou em casos de última necessidade, para cuidar de doença e comprar as coisas de maior monta. Mesmo assim, levo junto dois homens armados,  ordenados para atirarem em qualquer mínima suspeição. Candinha, por ordem minha, não tem saído do Sarará e, mesmo na fazenda, só anda acompanhada por Maria, sob o meu pretexto de que existem relatos de ladrões rondando por estas bandas.

A pobre mulher não fez qualquer indagação. Recebeu as minhas ordens e logo as assimilou. Fica quase todo o tempo na cozinha, fazendo bolos de fubá, de cenoura; biscoitos de toalha, Xiriri, doces  de mamão, de leite, de goiaba; preparando as comidas que saboreio sempre depois de uma boa dose de pinga. Ela não fala do Arnaldo, mas sei que também se lembra do meu amigo. 

As memórias do desgraçado ainda estão quentes na minha mente. Lembro-me das nossas conversas na varanda; das pingas que tomávamos, enquanto ele escutava as minhas filosofias, sempre assentindo com a cabeça, por baixo do chapéu velho de massa; da sua conversa mansa e respeitosa, sempre me dizendo coisas de muito tempo. Sinto saudades do meu amigo; mas, pela sua minha esposa, tenho que me precaver. Vai que ele resolve aparecer!