quinta-feira, 31 de outubro de 2019

ENCONTRO

As lembranças da mãe batiam forte. Desde que tinha chegado ao Sarará, nunca mais voltara a Bahia. Por isso, criara coragem e pedira ao Doutor Reis que o deixasse partir; voltaria dentro de uma semana, depois de ver a mãe e o irmão.

A viagem tinha sido longa, o Benjamin parecia se arrastar por sobre as águas. As lembranças da velha faziam seu coração doer: o sol queimando a moleira, a mãe encostada na porta com o lenço na cabeça, vestido sujo das cinzas do fogão, os olhos lacrimejando enquanto dava o adeus ao filho retirante.

A vontade era de chegar logo a casa, abraçar a velha, tomar uns bons goles da água da cacimba: água doce, barrenta, gostosa como a sua infância nas Tabocas. Será que ainda existia água na cacimba? Será que a mãe ainda o esperava na porta, com o velho lenço, o vestido sujo, os olhos cheios de lágrimas?

O Benjamin queria pirraçá-lo. Em cada parada, uma eternidade. Deitava-se na rede tentando dormir; alguns meninos corriam de um lado para outro; uma mulher cantarolava uma música estranha que ela mesma havia acabado de inventar. Uma modorra tomava conta do seu corpo, mas não dormia. Apenas lembrava-se da mãe e tinha mais vontade de chegar.
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A mãe não devia estar em casa. As portas estavam fechadas, cerradas por fora. As plantas estavam quase todas mortas e a cacimba já não tinha mais qualquer gota de água. A tristeza tomava conta daquele lugar e muito pouco fazia lembrar os velhos tempos. Já não tinha as feições do pai, que morrera quando Arnaldo ainda era criança, nem o cheiro da mãe, a quem ele temia não mais encontrar.

Não permaneceu por muito tempo nas Tabocas. Pegou novamente a sua mala e saiu rumo à cidade. Talvez encontrasse o irmão em casa. Ainda não era tão tarde e , se tudo estivesse como antes, ele só iria para a pescaria de noite, quando ficava deitado sobre o barco, com o anzol armado, esperando pelos peixes que venderia na feira na manhã seguinte.

Também o irmão não estava em casa. Lúcia, a cunhada, viera até o portão. Arnaldo não deixara de perceber o susto que a mulher sentira ao encontrá-lo em pé junto ao portão:

- Entre, Arnaldo. Não esperava vê-lo mais por aqui.

-  Quem é vivo sempre há de aparecer! E o Tonho, está?

A mulher pôs-se a chorar convulsivamente. Depois de algum tempo, com Arnaldo silencioso a observá-la, recompôs-se; respirou profundamente e respondeu:

- O Tonho não volta mais, meu cunhado. Saiu uma noite para a pescaria e quando o trouxeram já estava morto. Disseram que foi um mal súbito, que nada puderam fazer.

Arnaldo segurou-se para não demonstrar o abalo que sentira. Ficou por um mínimo tempo em silêncio e perguntou pela mãe:

- E mãe? O que é feito dela?

- Morreu pouco depois que você partiu. Durante um tempo ficou na roça; depois sentiu umas dores no peito e quando veio para cá procurando tratamento, não voltou mais para a casa. Enterraram ela junto do seu pai. Mas entre; fique no barracão lá dos fundos. Não precisa ter pressa em partir.  Visite a sua mãe e seu irmão e, se quiser, sinta-se na sua casa.

Arnaldo lembrou-se do Doutor Reis. Ele haveria de saber o que fazer; certamente diria algumas palavras difíceis, para depois ordenar as primordiais resoluções. Entrou e jogou a mala sobre a cama. Recusou o café que a cunhada oferecera e foi dar uma volta pela cidade.

A Lapa continuava a mesma de quando descera para Minas. Uma cidade cheia de religiosidade, com suas ruas cheias de esgotos e mendigos, o cais silencioso àquela hora da noite e os cachorros cochilando debaixo dos velhos bancos de madeira.

Arnaldo não chorava. Nunca fora homem de chorar. Mas o peito doía, sentia um nó na garganta, uma tristeza enorme fazia suas pernas tremerem. Sentou-se à beira do Velho Chico e ficou olhando para o infinito. Aonde ia dar toda aquela água, em que parte do oceano? E ainda ia ela depois? Será que as almas do irmão e da mãe seguiram o curso do rio, ou foram para o céu, assim como pregavam os padres? Talvez fosse embora no outro dia. Era isso. Não tinha por quê estar ali. Voltaria para o Sarará, veria o Doutor Reis.

A lua cheia refletia-se nas águas do São Francisco. Arnaldo pensava que talvez toda aquela água fossem os choros de todas as pessoas que sofriam. Certamente que todo o mundo era tomado por dores, pessoas que sofriam e choravam sempre. Ele próprio sempre sofrera, desde quando o pai morrera, quando tivera que ir embora deixando a mãe para trás, até a morte da mãe e do irmão. A vida era um eterno sofrimento.

E enquanto sofria, Arnaldo pensava e olhava o rio com toda a sua calma, um silêncio quase assustador, entrecortado pelos peixes que vez ou outra saltavam por sobre as águas, como num show sem entusiasmo ante os tristes olhos do pobre homem.

Já era tarde quando uma menina apareceu de uma rua escura. Vestia um vestido simples e era bonita. Andava devagar, como se divagasse sobre algo. Não olhava para os lados, apenas seguia. Arnaldo ficou a observá-la sem, contudo, enxergá-la. Apenas estranhou o fato e como não pensasse em nada ficou olhando aquela cena.

Resoluta, a menina seguiu o seu caminho; entrou dentro do rio e continuou em passos lentos; depois, deixou-se afundar como se fosse engolida pelo Velho Chico. Os seus cabelos já flutuavam sobre as águas quando Arnaldo arrastou-a para fora d'água. Foi a mãe quem o ensinara que todo afogado deve ser retirado pelo cabelo, para não levar junto para a morte o salvador.

Ambos entraram no barracão sem que a cunhada os visse. Ela já estava dormindo e Arnaldo, com a menina nos ombros, entrou sem fazer qualquer barulho. Deitou-a sobre a cama, tirou-lhe a roupa molhada e cobriu com o único lençol que tinha encontrado por ali. Ainda sem qualquer pensamento, preparou um cafe, sentou-se à mesa e pôs-se a tomá-lo. Pensou em dizer alguma coisa quando ela acordou e durante um tempo ficou a observá-lo, mas, como  adormecesse novamente, continuou o seu café.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

CÂNDIDA, A ESPOSA DO ARNALDO



Antes de ser a esposa do Arnaldo, era Cândida. Sem o pai desde pequena, acostumara-se a trabalhar na roça para ajudar a mãe no sustento da casa. Eram apenas as duas numa casinha simples, próximo ao velho Chico, quase aos pés do cruzeiro, cerca de alguma distância do Santuário de Bom Jesus da Lapa.


Orlinda, a mãe, plantava feijão, milho e, nos tempos de menos chuva, espinhentos pés de Palma, com os quais a menina se cortava enquanto lavrava a terra. Era um sítio minúsculo, herança do velho Tobias, que morrera afogado no rio, numa noite quente, numa pescaria com os amigos. Dizem que também havia mulheres e que uma delas tinha sido a causa do assassinato, pois muitos não acreditaram no processo da polícia, pois o velho era exímio nadador acostumado a atravessar o Chico de um lado a outro por horas à fio. A mãe creditava toda culpa ao filho do Coronel Calixto; mas calara-se e guardava toda a mágoa para si, afinal, não existiam provas. Apenas certezas, e nada mais.

O que as duas colhiam mal dava para o de comer. A mãe não reclamava; rezava todos os dias com Cândida para que Deus provesse o sustento, para que chovesse e que não faltasse o básico em casa. A água a menina buscava no rio, trazendo o balde na cabeça, controlando o caminhar para que nada fosse desperdiçado. Por uns vinte minutos caminhava sem descansar, enchia o pote, duas vasilhas e voltava para mais uma remessa de água.

A casa não tinha energia elétrica e pelas frestas das velhas telhas comuns, a menina observava os fachos de luz entrecortados pelas folhas do coqueiro que balançavam nas noites de vento, até que  sono chegasse com todos os sonhos de menina-moça.

Durante algum tempo, a mãe entretera-se com a roça e a rezas. Sempre tomada por um olhar triste, falava pouco e quase nunca sorria para a filha. Às vezes quase não comia e deixava que Candinha repetisse o prato de feijão, arroz e palma; saía para debaixo do coqueiro e, assentada junto à porta, a menina via que ela chorava baixinho, com a cabeça entre os joelhos.

Já fazia quase um ano da morte de Tobias quando a mãe saíra pela primeira vez. Já era quase noite e a lua nascia cheia pelos lados do cruzeiro. Disse à filha que talvez demorasse, que dormisse e não abrisse a porta para ninguém. Cândida ainda quis perguntar aonde ia, mas calou-se e ficou olhando para a mãe que sumia depois do passadiço, vestindo um vestido de domingo, mal e sustentando sobre as gastas sandálias de salto.

As saídas maternas tornaram-se rotineiras, enquanto a fartura aumentava naquela casa. Durante o dia nada tinha mudado, ambas trabalhavam na arduamente na roça e rezavam pedindo as mesmas coisas de outroras. A mãe ainda não sorria, não olhava nos olhos de Cândida e sempre que a menina se via distraída, punha-se a chorar debaixo do coqueiro, com a cabeça entre os joelhos. Numa noite de calor, quando a lua nascia cheia pelos lados do cruzeiro, deu um beijo na filha – fazia tempo que não a beijava – disse que não tardasse a dormir e não esperasse por ela. Virou-se, atravessou o passadiço e nunca mais voltou.

Por alguns dias Cândida procurou pela mãe. Depois resignou-se e continuou a trabalhar na roça. A chuva quase não vinha e mesmo a Palma já não era tão vistosa como nos tempos de Orlinda. O arroz e o feijão estavam minguando nas vasilhas do velho armário de madeira e dinheiro já não havia para comprar qualquer mantimento. A menina, forçada a ser dona de casa, assentava-se debaixo do coqueiro e, como fazia a mãe, punha-se a chorar.

Novamente a lua nascia cheia. A fome fazia com que a barriga doesse. O calor era quase insuportável. Cândida estava deitada, quase nua, sobre o jirau onde dormia. O suor descendo pelo corpo. Notou que os seios eram durinhos, as pernas grossas e os cabelinhos da coxa brilhavam com o suor à luz da lua. Levantou-se de súbito, vestiu um surrado vestido de chita, em sutiã, e saiu. Trancou a porta e, sem olhar para trás, atravessou o passadiço. Lembrava-se da mãe e tinha vontade de chorar.

A mocinha caminhou por entre os trilhos até que chegasse à Lapa. Não sabia o que fazer, se pedia esmolas, se oferecia o seu corpo. Assentou-se nas escadarias do Santuário e pôs-se a rezar silenciosamente, depois levantou-se e caminhou lentamente pelas ruas cheias de esgoto, entre os mendigos, rumo ao cais do Velho Chico. Não haveria de ser como a Mãe, que certamente tinha vendido o seu corpo aos turistas para dar o de comer a ela. Não tinha qualquer boca para sustentar e, por isso, não precisava se sujar nos corpos de homens embriagados, porcos sem coração, sedentos de sexo em meio à sudorese daquela noite, enquanto as muriçocas zuniam nos seus ouvidos. Entregaria sua alma ao rio, acabando com o seu sofrimento, matando sua fome, juntando-se ao seu pai e, quem sabe, também à Orlinda que, decerto, haveria de não ter aguentado tamanha humilhação de vender-se e se jogara ao peixes. Seria aquele o seu fim.

A água estava fria, embora fizesse calor àquela noite. Cândida ia entrando devagar, deixando que a água engolisse cada parte do seu corpo virginal. Os pés iam se afundando na lama e um estranho prazer tomava conta do seu corpo. O rio a abraçava, assim como devia ser o abraço de um amor, e ela ia se afundando: as pernas, os joelhos, as intimidades, o umbigo, os seios, a boca, até que apenas o cabelo sobrasse por sobre as águas. A mocinha ia caminhando lentamente, sentindo-se consumida por um gozo intenso.

De repente, tudo escureceu, faltou-lhe o ar, faltaram-lhe as forças. Sentiu um bate forte na cabeça, como se alguém lhe puxasse pelos cabelos. Seria a morte que já lhe encaminhava para junto dos pais, ou seria o rio que a arrastava para o profundo do seu âmago? Sentiu a escuridão penetrar-lhe na alma e deixou que aquela força a arrastasse para junto de si. A cabeça doía, mas era bom. Aquilo lhe causava sofrimento, mas também lhe dava prazer; por isso, não resistia. Somente por isto.

Ainda era noite quando abrira os olhos. A cabeça doía, todo o corpo doía. Já não estava mais com o vestido. Estava toda nua, deitada sobre uma pequena cama, coberta por um lençol encardido. Não tinha morrido, ainda não era a sua vez. Uma lamparina acesa permitia que vislumbrasse o ambiente. Devia ser um velho barraco ou algum quartinho mais afastado; quase não havia móveis, apenas a cama, um pote de água e uma mesa, onde um homem tomava alguma coisa numa surrada caneca de alumínio. Ele olhou para ela e sorriu. Não era bonito. Ela tentou se levantar, mas tudo ficou escuro e, depois, apenas o silêncio.



segunda-feira, 28 de outubro de 2019

DOUTOR REIS

Com a morte da mãe, Reis fora mandado à Capital novamente, agora para estudar o Direito e se formar em doutor. Mal tinha voltado para casa depois de terminar o ensino médio quando, numa noite de muito calor, a mãe, que era cheia de pequenas dores e  reclamações, sofrera um dor forte no peito e morreu nos braços de Lourenço. 

O pai exigiu que a família guardasse o luto necessário e, assim que se viram todos desobrigados da tradição, ordenou que o rapaz voltasse aos estudos. Longe do Sarará, Carlos Henrique tinha ficado um tempo na vadiagem, aproveitando a vida nos botecos, deitando-se com as mulheres da vida, estudando o mínimo para não tomar pau e levar sova do velho. Morria de medo pai, sujeito de poucas palavras e mão pesada para os tabefes, olhar profundo e intimidador, justo e encorajado aos castigos paternos.

Depois de um tempo, pegou gosto pelo direito e também pelas poesias regadas a bebidas e cigarros, as quais sempre aconteciam nas casas dos colegas. Às vezes se apaixonava e punha-se destarameladamente a versejar; depois, com o espírito solidário dos poetas, fazia odes, elegias, sonatas e canções que falavam sobre coisas vagas, divagações e devaneios.

Engraçou-se com uma negrinha que trabalhava na casa de um colega, pensou em amasiar-se, mas, com a doença do pai, desfez-se do pensamento. Não teria coragem de mostrá-la ao velho Lourenço, além do mais, tudo aquilo eram coisas desnecessárias. Recebeu o diploma em cerimônia solitária, tendo justificado plausivelmente a causa à reitoria e, logo, desceu para casa.

No Sarará, encontrou Lourenço já decadente, mas ainda com as ideias inteiras. Resolveu que aprenderia rápido os seus ensinamentos e, logo que o pai lhe faltasse, buscaria a negrinha para junto de si. Com o tempo, porém, esqueceu-a de vez e viu que realmente eram coisas desnecessárias.

Arnaldo tornou-se o amigo necessário. Era um homem quase mudo, de palavras humildes e sem grandes pretensões. Ouvia tudo o que o patrãozinho dizia, chamando-o por Doutor, concordando candidamente, ainda que Reis compreendesse que quase nada o homem entendia, pois procurava usar de palavras difíceis, das quais, muitas, nem ele próprio conhecia o significado.

Carlos Henrique tranformara-se em Doutor Reis, um jovem advogado respeitado pelos vizinhos do Sarará e bajulado pelos empregados do velho, que aos poucos foram sendo despedidos da fazenda, restando Arnaldo e a negra, que  ajudara os pais a criá-lo e de  quem o velho o fizera prometer que nunca se desfaria. Ouvia muito o pai e conversava quase todo o tempo com Arnaldo, levando-o para as festas, os botecos e a casa de Catarina, onde ela mantinha umas meninas bonitinhas.

O Doutor Reis se esbaldava junto das meninas de Catarina, enquanto Arnaldo mantinha-se sentado junto ao balcão, cochilando e esperando pela hora de ir embora. O advogado ria do amigo e ordenadava que lhe dessem o de beber, para ver até onde aguentaria o pobre diabo.

Arnaldo era mesmo um homem bom. E embora Reis não aceitasse, gostava de ouvir as suas opiniões, sempre tímidas e cheias de velados perdões pela ousadia de pensar. Falava palavras poucas e simples, mas chegavam cheias de profundidades filosóficas e sociológicas, assim como são os pensares de todos os sertanejos e  catrumanos, homens sofridos, cheios de sapiências. Talvez por isso falasse difícil e quase sempre procurava colocar poréns nós pensamentos de Arnaldo.

E isso quase nunca o deixava dormir sossegado. Quase nunca.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

ARNALDO

Quando Arnaldo chegara ao Sarará, Reis estava na Capital, cursando a faculdade de Direito. Viera descendo o São Francisco até chegar em Pirapora, onde ficou por um tempo mexendo com pesca e venda de peixes. Contava pouco mais de vinte anos, era tranquilo e trabalhador. Ia às missas ao domingo e gostava de tomar sua cachaça todos os dias, no fim de tarde, no boteco à beira do rio, enquanto via as águas correndo de um lado para outro.

Numa noite de lua, enquanto degustava a sua cachaça comendo um fritado de traíra, os homens da polícia vieram buscá-lo. Falaram sobre um roubo no pesqueiro, que haviam indicado a sua participação, que tinham encontrado o dinheiro e as tralhas no seu barraco e, por isso, ele estava preso.

Sem qualquer crime cometido de fato, Arnaldo ficara um mês encarcerado e, sem emprego ou esperanças à beira-rio, com medo de que de novo armassem-lhe alguma, resolveu adentrar pelo interior; mexeria com gado, trabalharia como caseiro, faria carvão ou plantaria roça de milho, mas não ficaria mais no Velho Chico.

Seu Lourenço não pedira qualquer recomendação. Era acostumado a lidar com jagunços, capangas e homens de toda índole. Logo viu que aquela era uma boa alma e, por isso, deixou que ficasse no casebre do Angico, faria de tudo, junto com os outros empregados, que haveriam de ensiná-lo as tarefas diárias.

O Angico lembrava as Tabocas e a sua mãe. A velha tinha ficado na Bahia, toda chorosa, encostada junto à porta, enquanto ele saía em busca de algum futuro. Ainda tentara, sem sucesso, fazê-lo ir em busca do irmão, na Lapa. Um dia haveria de visitá-lo, mas, por ora, naquela cidade, apenas pegara o Benjamin Guimarães, cheio de esperanças e saudades, com o coração sentido pelas maldades dos ribeirinhos.

Só depois, ainda antes que  Doutor Reis chegasse, é que havia se mudado para junto da sede. Arnaldo ia aos poucos ganhando a confiança do velho e com isso a cada dia se aproximava mais da casa grande.

Quando Doutor Reis chegara, Arnaldo ficara incumbido de acompanhá-lo. Seu Lourenço já não tinha forças para tomar conta de toda aquela imensidão de terras, muitos dos homens já tinham ido para outras bandas e a chuva já começava a rarear. O velho dizia que não haveria mais o que fazer, que depois que partisse, o filho aguentasse ainda um tempo, até que a negra se fosse, até que a última vaca morresse. Daí fizesse o que fosse necessário, mas que fosse homem como ele.

O Doutor, enquanto o velho padecia, tratou de gozar os prazeres do lugar, sempre com Arnaldo à tiracolo. Eram como se fossem velhos amigos, ambos de idades próximas e vontades parecidas, mas sempre lembrando que nunca seriam iguais.

Arnaldo era sujeito simples, sem maldades, sem grandes anseios aparentes. Quando estava junto do patrãozinho, queria o que aquele quisesse; procurava ficar em silêncio, sempre solícito às conversas do Doutor, embora quase sempre muito pouco entendesse. E quando estava sozinho, sonhava em ser patrão, contrair matrimônio e ter um monte de filhos. Divertia-se com o patrão, mas tudo por ordens de Seu Lourenço, que não demorava em partir.

Depois, com a morte do velho, Doutor Reis não foi mais o menino de outros tempos. Tornou-se num homem de boa prosa, palavras difíceis e justiça franca. Tentava levar o Sarará o mais alto que pudesse, mas tinha a ciência de que nunca seria igual ao italiano. Nunca. E talvez fosse isso que o inflava nas contas de Arnaldo.

SARARÁ

Doutor Reis lia, assentado numa velha poltrona de couro, um calhamaço da história de Riobaldo e via em cada detalhe pedaços do Sarará. Por vezes, até pensava em filmar ali alguma estória criada a partir do Romance de Guimarães. Mas tais pensamentos ficavam apenas em sua mente. Faltava coragem para pô-los em prática e, por isso, preferia ficar observando Arnaldo com suas ignorâncias; a esposa com as suas novenas e promessas pela chuva; o sol encaminhando a vida de toda aquela gente.

Sarará já fora uma grande fazenda, com muito gado, cana de açúcar, extensas plantações de feijão, milho,mandioca  e um incontável número de empregados. Mas isso tinha sido na época do Velho Lourenço, quando as chuvas eram frequentes no norte de Minas e o povo ainda tinha alguma coragem para trabalhar.

Dos muitos empregados sobraram Arnaldo e a esposa. Ele da época do velho; ela prenda nova, trazida há pouco da Bahia, em quando o vaqueiro visitara um irmão que morava pelos lados do Bom Jesus.

A esposa do Arnaldo era menina nova, embora trouxesse no rosto as marcas da velhice causadas pelo sol, pela lida no campo, pelo sofrimento nordestino. Não contava ainda os trinta anos, mas seu rosto cansado lhe dava um ar de maturidade precoce e uma seriedade respeitosa. Vivia fazendo novenas e prometendo prendas aos santos pelas chuvas que quase nunca chegavam.

Ela não olhava nos olhos e quase nunca dizia qualquer palavra. Se falava, eram coisas necessárias, a mando do marido ou em casos de extrema urgência, quando o mesmo não estivesse em casa ou não pudesse fazê-lo. Ficava quase todo o tempo em casa, com a cabeça coberta por um lenço encardido e as unhas enegrecidas pelas cinzas do fogão a lenha.

Ainda assim, com todas as suas maledicências, a esposa do Arnaldo era uma mulher bonita. Tinha os seios durinhos, como têm as mocinhas de tenra idade, sem usar sutiã, deixando-os transparecer por entre os minúsculos buracos dos vestidos velhos rasgados. As coxas eram torneadas e a bunda grande, balançando ingenuamente enquanto ela corria de um lado para outro a fim de aviar o almoço do marido, pegando as folhas verdes na roça, colhendo a pimenta na bacia, buscando  água na cisterna.

Doutor Reis, assentado na velha poltrona de couro, fechava o livro por um instante e punha-se a observá-la. Arnaldo era mesmo um cara de sorte, tinha uma mulher sem maldades, que certamente o amava, com os atributos de uma senhora de casa e com a flama das moças da rua. Enquanto ele, com todo o seu nome e dinheiro continuava sozinho. Acompanhado de uma negra velha que fazia os trabalhos de casa, a comida e lavava as suas roupas; mas sem ninguém que lhe saciasse os desejos do corpo.



CANÍCULA

- Não adiantam os impropérios. Nesta canícula, a sofreguidão é o que impera. - Doutor Reis dizia com a voz mansa e o suor descendo pela testa.

Arnaldo, bastante encabulado, silenciava-se sem entender os dizeres do patrão. Era sempre a mesma coisa, começavam uma conversa qualquer e logo o homem vinha com aquelas palavras difíceis; coisas de advogado, homem de família rica, estudado desde novo na capital e que tinha voltado para cuidar das terras do pai.

Não tinha o que reclamar do Doutor Reis. Homem justo, correto. Mas bom mesmo era o velho Lourenço. Que Deus o tenha em bom descanso. Ainda tinha lenha para mais alguns anos; mas as coisas divinas não devem ser contestadas e se morreu é porque já era chegada a sua hora. Arnaldo havia aprendido isso com sua mãe, uma velha benzedeira dos lados das Tabocas, que sempre o recriminava quando questionava alguma coisa de Deus. Crendeuspai!

Ninguém sabia ao certo de onde viera Seu Lourenço, mas eram várias as versões sobre o homem. Uns diziam que tinha vindo das partes do Sul, fugindo de uma das tantas guerras nos Pampas; outros diziam que era filho de uma mulher da vida que havia se casado com um senhor de Cacau na Bahia e tendo matado os pais num átimo de fúria por alguma banalidade, tinha fugido para estas bandas, onde poderia plantar o seu império.

O que a maioria aceitava, no entanto, sobretudo por lhes parecer mais heroico, era o dito de que viera o velho, ainda rapaz, das bandas italianas. Diziam que ele fugia da guerra, tendo se trancafiado num caixão de morto, viajando por vários meses no porão de um navio, comendo carne de rato e bebendo a água que descia do convés.

Lourenço era um homem alto, gordo e muito branco. Suas bochechas  eram rosadas e seus cabelos bastante negros. O velho morreu sem nenhum fio branco na cabeça, assentado debaixo de uma velha e enorme mangueira, olhando a igrejinha que há pouco havia sido findada em homenagem a São Judas, o Santo das causas impossíveis. Estava comendo uma coxa de frango e tomava um vinho trazido por um caixeiro-viajante que viera dos lados sulinos.

Doutor Reis tinha a feição do Seu Lourenço. Mas não tinha jeito, ele não era o velho. Era somente um homem justo e correto. Talvez por isso nunca seria o italiano. Nunca.







terça-feira, 15 de outubro de 2019

O CHEIRO DAS PROFESSORAS


As professoras de antigamente tinham o cheiro da profissão. Esta afirmativa pode parecer estranha ao leitor mais desavisado, mas para mim sempre foi assim. Todas elas tinham um perfume diferente, perfume que nunca mais encontrei ou, quem sabe, nunca mais me lembrei. A verdade é que a infância me chega quase sempre pelos cheiros, por sensações ou por vagos lampejos recordativos.

Dos tempos de escola, lembro-me do cheiro da sopa de letrinhas, do “achocolatado” de morango, do beijo da diretora quando hasteei a bandeira, talvez numa semana da pátria, das músicas que cantávamos para ir ao lavabo antes da merenda, dos cortes que ganhei na cabeça quando apanhei de um garoto bem mais velho, de Caetano dormindo debruçado na carteira durante uma das aulas e eu tentando fazer o mesmo.

As lembranças são vagas, mas, paradoxalmente, são fortes. Lá se vão três décadas dos anos iniciais, quando as turmas ainda eram na escolinha, próximo ao hospital “Novo”, e nós estudávamos nos “CBAs”, cujo significado eu nunca soube; mas as lembranças teimam em permanecer: Dona Angelina dizendo para a minha mãe “Pode levar o menino, quando ele quiser ficar sem chorar a senhora traz” e eu voltando só no ano seguinte, sob a tutela de Dona Benedita, cuja lembrança mais viva é uma foto de formatura já amarelecida no velho álbum.

O cheiro das professoras ainda permaneceria por algum tempo, com Dona Raimunda e seu olhar altivo, sua voz grave e seu jeito distante. Os carinhos ficavam por conta da diretora, que me colocava para hastear a bandeira, da vice-diretora que me alisava o cocuruto enquanto falava, de Dona Marleninha que me pintara o rosto durante um dos carnavais na escolinha. O cheiro das professoras era inocente, e com o tempo haveria de se perder na correria diária da vida adulta.

Dona Sérgia e Dona Dilma mantiveram ainda aquele cheiro. Aquela com sua voz mansa e seu olhar generoso, impulsionando o menininho gordo de olhos arregalados para que escrevesse um livreto sobre “A Minha Pátria”, que seria exposto no Banco do Brasil, na praça da Matriz e que minha mãe, apesar de todo o esforço despendido, não conseguiria arrematar para guardar de recordação. Essa tinha os traços de Dona Raimunda, de quem era irmã. Dona Dilma era uma mulher forte, que tinha a voz firme, distante e imponente, exigindo, ainda que mudamente, todo o nosso respeito.

Nunca mais me lembrei do cheiro das professoras. Não do cheiro em si. As lembranças são de que elas tinham um cheiro peculiar, um perfume professoral, que me causava encanto, medo, respeito, admiração.E talvez por isso também eu tenha me tornado professor. Talvez também eu tenha algum cheiro de professor. E, quem sabe, talvez um dia alguém também diga “Ele foi meu professor”. E isso me bastará.



segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A VIDA


            Do galho mais alto da mangueira ele pode ver boa parte da cidade. Sua casa fica no alto de um morro, perto da torre de transmissão, junto de um monte de outros casebres, construídos há muito tempo por alguma velha administração, quando a cidade ainda era uma minúscula povoação e pertencia à outra cidadezinha, aonde todos os velhos iam uma vez por mês para pegarem o dinheiro da aposentadoria e fazerem as compras do mês.

            Durante um tempo os velhos não tiveram mais quer ir à cidadezinha para pegarem o dinheiro da aposentadoria e fazerem as compras do mês. O povoado havia sido emancipado: ganhara um posto de saúde, uma unidade dos Correios, um pelotão policial e uma pequena prefeitura. Os velhos pegavam o dinheiro nos Correios e gastavam boa parte na única venda da nova cidade. Já não podiam comprar tudo o que compravam na cidadezinha vizinha, afinal, a variedade era menor e os preços bem maiores. Por isso, compravam arroz, feijão, fumo e pinga. Verduras e frutas colhiam-se nos quintais . E o resto eram coisas desnecessárias.

            Naquela época não havia jovens. Ou se era velho ou se era criança. Ele era apenas uma criança, enquanto seus pais já eram velhos. Nenhuma criança tinha mais que dez anos, já os velhos não contavam menos que sessenta primaveras. Ninguém trabalhava. Os velhos, aposentados, porque não aguentavam a labuta pesada da roça ou porque não tinham paciência para as aporrinhações da prefeitura, preferiam ficar sentados na porta da rua, olhando as crianças que brincavam e, por serem muitos pequenas, não podiam ainda trabalhar.

            Olhando a cidade por cima da mangueira, ele vê a lagoa lá embaixo, quase seca, sem grandes esperanças. Antigamente, quando ainda era criança, e os pais já eram velhos, ele descia para a escola e passava pela lagoa, onde pescava peixes e trazia cágados, que recheariam o almoço da semana. A velha não gostava que ele fosse até a lagoa, mas não dispensava os peixes e os cágados que trazia.

            Um dia, antes que o sol saísse, os pais foram para a cidadezinha vizinha buscar o dinheiro da aposentadoria, pois, com a paralisia da nova urbe, os Correios resolveram fechar a unidade local, restando apenas o posto de saúde, o pelotão policial e a prefeitura. O menino desceu para a escola, com a incumbência de preparar o almoço e cuidar dos bichos no quintal. Neste dia não passara pela lagoa e no almoço comeu apenas arroz e feijão.

            Dez anos depois os pais ainda não voltaram. Um pessoal da prefeitura foi até o casebre no alto do morro e, como ele insistisse em esperá-los, garantiram uma ajuda que o permitisse viver ali até que se tornasse adulto. Depois de um tempo não voltaram mais, embora deixassem todos os meses debaixo da porta um envelope com algum pouco dinheiro.

            Do último galho da mangueira ele observa a cidade. O posto de saúde acabou de fechar as portas, enquanto um Jeep sobe, com os dois últimos policiais, a ruazinha que dá para a cidade vizinha.  Talvez os pais não voltem mais. Quase todos os velhos tinham morrido, enquanto as crianças, agora homens e mulheres, tinham ido embora para a capital. O dinheiro do mês ainda não foi colocado debaixo da porta do casebre e talvez já seja a hora do rapaz ir embora.

sábado, 12 de outubro de 2019

O TRISTE CANTAR DE UM AMOR (Mutação)

A última vez em que cantei
senti que uma força estranha
me possuía, tal como um gozo,
tal como um êxtase, que me
subia pelo corpo magro e vagava
pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos
e sumia, sem chegar à mente.

E nunca mais cantei!

Um sorriso surgia-me dos lábios
tal como uma rosa, que se abre
sob os cânticos de um beija-flor apaixonado;
e um brilho tão rútilo quanto o sol,
nascia dos meus olhos infames, tal como
um bebê que nasce das entranhas
de um bem querer. E como era bom!

E nunca mais cantei!

Notava que minhas mãos tremiam,
meus pés, frios, suavam e minha
garganta secava, como que em sede de amor.
E um desejo de amar fazia pulsar
o meu sincero coração pequeno...
E ele crescia... crescia... crescia...
E saltava da boca, como um jato de emoção.

E nunca mais cantei!


Elismar Santos 12/10/ 2002

SÁ LÚCIA (Mutação)

Sá Lúcia perambula
pela rua, como que
se andasse pela vida
(devagar e preguiçosa),
para, com sua negritude,
no meio do asfalto idem
e, limpa como o dia,
pega um graveto
seco como o ar de sua vida,
alguns plásticos sujos
(de lama, comida e fezes).
A casa de Sá Lúcia
é toda feita de gravetos
e plásticos sujos
(sem contar os papelões,
que um dia a pôs em fogo).
Sá Lúcia é toda suja
(por fora) mas, um dia,
ela há de descansar,
e, aí verão os limpos
que Sá Lúcia é o mais limpo
entre todos os seres.
E a mais pura
entre todas as almas
que perambulam
pela vida de minha rua.
Saberão todos
que a negra Sá Lúcia
é a mais branca
entre todas as almas.

Elismar Santos 19/03/2003

AMIZADE (Mutação)

Aquele vento quente
que sai da boca da menina
lembra-me os abraços
dos amigos que deixei.
Eram abraços fortes
de amizades quentes
que, como o vento,
no nada se acabou.
Onde andam os amigos
que para trás deixei?
Talvez se formaram
em frios doutores,
homens que trabalham
para ganhar a vida alheia.
Ou talvez se tornaram
em forneiros d'amizade
que distribuem
abraços quentes.
Tão quentes como o vento
que sai da boca da menina!


2002

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

AVISO II (Mutação)

Faz-se , através deste, saber
que o poeta é sonho;
que inexiste no tempo,
e na vida, como aura, perdura.
E institui-se, na lei da vida,
a proibição de sonhar ou poetar,
adormecido na ilusão.
Devendo-se de louco taxar
que, porventura, sonhar.
Valendo-me da minha
irreal desilusão, tenho dito!
Um incrédulo.

AVISO (Mutação)

Se chamarem por mim
diga que adormeço
e peço que me respeitem o sono.
Pois a leveza dos sonhos
me povoa a mente
e me apaga dos olhos
a visão do mundo
em que um dia nasci.
E, acordado, vejo morrer,
como que se o bonde passasse
e ninguém notasse;
ninguém, além da vida e eu.
Peça que voltem mais tarde
quem sabe... amanhã...
Depois... ou não voltem nunca.
Mas me deixem sonhar
Afinal... sou feliz assim!


Elismar Santos 27/03/2003

REBATE (Mutação)

Tu, que gaba-te sapiente,
não sabes a sabedoria
que surge  do fundo d'alma,
não sabes a sabedoria
que os homens nunca hão de ter.
Agradeço a sapiência que
não tens (e nunca terás),
pois a pequenez dos teus
não são dignos de aplausos,
os quais te espera a mesquinha
falsidade, que povoa a alma
e os sonhos teus recolhidos.
Tu, que é as podridão nua
desta solene vida crua,
não sabes que é ressonância
da burrice malograda,
que paira em teu dissabor.

Elismar Santos 10/04/2003

sábado, 5 de outubro de 2019

LIBERTAÇÃO (Mutação)

Joguemos fora as bocas
para que elas não digam
mais as besteiras que dizem
e não beijem mais
as bocas feias que beijam,
com suas podridões fedorentas
e seus vermes inescrupulosos.

Joguemos fora as bocas
e falemos pelos cotovelos
e façamos gestos obscenos
com o dedo, com as mãos,
com os braços, com os olhos
e choremos a lágrima pura
que vem do fundo d'alma.

Joguemos fora as bocas
e libertemos o sentimento humano,
aquele... que as palavras
soterraram no peito
e, depois, jogaram pedra em cima.

INCOMPLETO (Mutação)

Ao som rouco de uma música
o café do lado
um jornal à frente
pego uma caneta (que não escreve)
um caderno velho (rabiscado)
e na cabeça a lembrança (branca)
dos tempos claros de nossas vidas.
Eu a namorar-te...
Quanta inocência!
Como pode...?!
O ser humano... tão pequeno...
É verdade, amo-te ainda!
Confesso que amo-te, ó, lua!
Mas queria ser grande...
Queria ser teu!
(O que eu escrevi?).


Elismar Santos (2000)

RECÍPROCA VERDADEIRA (Mutação)

O mundo é vasto
e efêmero, mas o efêmero
é belo, e a vida é bela.
Logo... a vida é efêmera!

Mas o amor é eterno e terno.
E o amor consome-se da vida;
logo... a vida também é eterna,
e o efêmero não existe...
Se é que existe amor.


Elismar Santos  04/10/2002

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

POSSESSIVIDADE (Mutação)

Somos tão íntimos
de nós mesmos,
e também dos nossos
próprios pensamentos.
Somos tão intimamente
ligados a nós,
que, às vezes, esquecemo-nos
friamente das almas
que nos cercam e velam.
Às vezes, por nos preocuparmos
com nós somente,
guardamo-nos num quarto escuro
e esquecemos da vida
e esquecemos do mundo
e esquecemos de nós,
e quando nos lembramos
de nos achar, estamos mortos,
no fundo da nossa prisão.


Elismar Santos 21/03/2003

MEDO (Mutação)

Naquele dia
foi o coração
quem fraquejou
ao ver
aquele rosto meio
a me olhar
fundo nos olhos.
Naquele momento
uma lágrima
caiu solitária
do fundo
do meu eu carente.
Ah, morena
dos olhos brilhantes!
O brilho dos teus olhos
calou meu coração
que tapou-me a boca
e endureceu-me as pernas
que mi fizeram, estático,
Vê-la, sozinha, partir.


Elismar Santos  06/05/2002

ATALAIAS DISPERSAS (Mutação)

A Castro Alves



Os cimos não são como atalaias
ó, Castro, pois eles adormecem
e deixam apossar-se deles
toda a orla social
e deles, estes se apoderam.
Se tu fosses vivo, ó, Castro,
Desfazer-se-ia do teu poema
e do mais alto dos cimos
choraria a dor dos tétricos
que veem, com as mãos atadas,
seus mundos dispersarem-se
em supérfluos sentimentos.



Elismar Santos (2002)

POEMA DE RESIGNAÇÃO (MUTAÇÃO)

Justo agora
que sou rei
entrego-te
o meu reino.

Entrego-te
minha vida
que se tornou
meu trono.

E dou a ti
meu sonho
que meu não é,
entrego-te.

Leva a vida
que meu reino
te oferece,
mas deixe-me

Morto em mim
solto em mim
preso em mim
que sou sonho

E inexisto,
se é que existe
esta dor
que está em mim

e tu não vês, 
nem sentes,
e não sabes
que me mata

Como flecha
que perfura
o árduo peito
em candura.

Entrego-te
meu reino
mas peço-te
minha vida

pra que eu morra
e comigo
leve o sonho
que não e meu

pois não és tu,
ó, serpente!
da crua noite
a nua deusa

que m'encanta
os alvos dias
e faz roer
a crua dor.

Vai-te, e deixa
eu sonhar
com o terno
ser do amor.

MUTAÇÃO (Primeiro Poema)

A partir de hoje, publicarei neste espaço os poemas do meu primeiro livro: MUTAÇÃO. O mesmo foi publicado no ano de 2003, tendo sido lançado no "Psiu Poético" de 2004, em Montes Claros, com a sua apresentação no evento feita pela professora Ivana Ferrante, da Universidade Estadual de Montes Claros, contando no seu prefácio com as inteligentes palavras do professor e radialista Benedito Said. 

Observa-se aqui não se tratar de um primor técnico no fazer poético; não obstante, é possível notar a puerilidade presente em cada verso, a verdade em cada estrofe, além das críticas sociais em cada entrelinha. Assim, não seria demasiada a afirmativa de que se têm em cada página os passos de uma travessia, de um autoconhecimento, uma construção poética e pessoal.

MUTAÇÃO não é um livro construído para se lê tomado por críticas ou pré-conceitos. Antes, tratam-se de poemas a serem lidos com o espírito adolescente, com todas as suas falhas, as suas incongruências e, indubitavelmente, uma eterna esperança de que se há de chegar a algum lugar, levado pelas asas da poesia. E tenho dito!



SENTIMENTO LÚCIDO


Se amo não conto
para que os outros não saibam o que é amar.
Guardo-o para mim, no fundo do peito,
em forma de gélidos casulos
que, confesso, às vezes derretem
e saltam de mim em forma de lágrimas,
em forma de saudade,
em forma de verdade, em forma de dor.
Se amo não conto
e se amo não sei, por não saber o que é.
Mas, às vezes, quero amar
para sentir no peito a dor
(tão grande como a morte prematura)
e sentir na áspera pele (de rapaz trabalhador)
os calafrios mórbidos dos amantes
que nem Baudelaire ou Drummond,
no afã de suas sabedorias, me conseguiram explicar.
Acho que nunca amei, mas amo.
De manhã, quando amanheço,
amo o sol que me incendeia o frio olhar;
de tarde, quando escureço,
amo as estrelas
que iluminam, do céu, meu obscuro saber.
Durante todo o dia porém, enquanto vivo,
carrego no peito uma dor, em forma de mulher,
que às vezes finjo inexistir, e amo.
Mas não sei o que é amar, haja vista que sofro,
e o amor não se carpe em mim.
Se amo não conto
mas quero quem ame
para dizer-me de mim... e do meu amor.
E contar que me ama (sem rogo)
e que para mim o amor guiará
e entre as frestas e a candeia me fará sonhar.
Mas não quero um qualquer amor,
quero aquele que se esconda de mim
e me diga baixinho que não sei amar.
É por isso que se amo não conto
para não dizer o amor que não é assim que é!

Elismar Santos 

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

DIÁRIO DE BORDO 1

Quinta-feira, 03 de Outubro de 2019

A noite cai lentamente em Brasília. Faz muito calor e os ratos já começam a passear pelos caibros do telhado. Talvez amanhã eu encontre coragem para matá-los. Hoje me falta ânimo para qualquer atividade, afinal, foram mais de nove horas sacolejando dentro de um ônibus, assentado numa poltrona velha apertada, junto de um velho que tossia a cada dois minutos. O sono me embriagava, mas as pálpebras teimavam em não se fecharem e, quando vi que não dormiria de jeito algum, apelei para os cafezinhos de cada parada. Agora estou cansado e com azia, olhando os ratos que passeiam pelos caibros.

Cheguei ainda antes do almoço. Desci na rodoviária nova, peguei o metrô, outro ônibus e desci  para a Cidade Estrutural, um emaranhado de casas simples, algumas de alvenaria, a maioria (assim como a que habitarei por estes meses) de madeirite. Fazia tempo que ninguém a habitava e por isso passei horas trabalhando na limpeza, no asseio da velha casa. Assim como me dissera o seu dono, que me alugara por preço módico, e mora na Candangolândia,  todas estas casas são fruto de uma invasão acontecida em meados dos anos mil novecentos e noventa. Dissera ainda que Roriz havia prometido regularizá-las e o Buarque tentou derrubá-las. Ninguém conseguiu qualquer êxito e todas as casas continuam no mesmo lugar. Poucos têm condições de construí-las de alvenaria e os que possuem alguma condição não se arriscam a fazê-lo, vai que o governador derruba!

Comprei pouca coisa no mercadinho, pois não penso em ficar muito tempo. Assim que me arrumar, alugo um quarto na Ceilândia ou Taguatinga e quando entrar no funcionalismo público, mudo para uma das Asas e vou viver a vida de granfino. Por enquanto, me contento em observar os ratos e ouvir os tiros lá fora. Já está escuro, todos os portões estão trancados e as únicas pessoas que perambulam pelas ruas a esta hora são os homens e mulheres que voltam do trabalho - em sua maioria faxineiras e trabalhadores da construção civil, grande parte vindos do nordeste em busca de melhores condições de vida - além dos malandros que vendem drogas nas bocas ou vigiam as entradas da cidade.

A luz já foi embora umas duas vezes. Os ratos derrubaram a vasilha de farinha que estava sobre a geladeira. A boca está seca, pedindo uma cerveja gelada, como as que eu tomava todas as noites no bar do Romildo. Os tiros dão uma pausa e depois voltam, talvez para me lembrar que não estou mais no interior de Minas. Ainda não liguei para os velhos, que devem estar preocupados, olhando esperançosos para o celular, enquanto o caldeirão de feijão ferve no fogão de lenha. Um sujeito grita no meio da rua, a sirene da polícia passa desesperada. Tiros pipocam. Talvez seja melhor deitar debaixo da cama, pois amanhã será um novo dia.