As lembranças da mãe batiam forte. Desde que tinha chegado ao Sarará, nunca mais voltara a Bahia. Por isso, criara coragem e pedira ao Doutor Reis que o deixasse partir; voltaria dentro de uma semana, depois de ver a mãe e o irmão.
A viagem tinha sido longa, o Benjamin parecia se arrastar por sobre as águas. As lembranças da velha faziam seu coração doer: o sol queimando a moleira, a mãe encostada na porta com o lenço na cabeça, vestido sujo das cinzas do fogão, os olhos lacrimejando enquanto dava o adeus ao filho retirante.
A vontade era de chegar logo a casa, abraçar a velha, tomar uns bons goles da água da cacimba: água doce, barrenta, gostosa como a sua infância nas Tabocas. Será que ainda existia água na cacimba? Será que a mãe ainda o esperava na porta, com o velho lenço, o vestido sujo, os olhos cheios de lágrimas?
O Benjamin queria pirraçá-lo. Em cada parada, uma eternidade. Deitava-se na rede tentando dormir; alguns meninos corriam de um lado para outro; uma mulher cantarolava uma música estranha que ela mesma havia acabado de inventar. Uma modorra tomava conta do seu corpo, mas não dormia. Apenas lembrava-se da mãe e tinha mais vontade de chegar.
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A mãe não devia estar em casa. As portas estavam fechadas, cerradas por fora. As plantas estavam quase todas mortas e a cacimba já não tinha mais qualquer gota de água. A tristeza tomava conta daquele lugar e muito pouco fazia lembrar os velhos tempos. Já não tinha as feições do pai, que morrera quando Arnaldo ainda era criança, nem o cheiro da mãe, a quem ele temia não mais encontrar.
Não permaneceu por muito tempo nas Tabocas. Pegou novamente a sua mala e saiu rumo à cidade. Talvez encontrasse o irmão em casa. Ainda não era tão tarde e , se tudo estivesse como antes, ele só iria para a pescaria de noite, quando ficava deitado sobre o barco, com o anzol armado, esperando pelos peixes que venderia na feira na manhã seguinte.
Também o irmão não estava em casa. Lúcia, a cunhada, viera até o portão. Arnaldo não deixara de perceber o susto que a mulher sentira ao encontrá-lo em pé junto ao portão:
- Entre, Arnaldo. Não esperava vê-lo mais por aqui.
- Quem é vivo sempre há de aparecer! E o Tonho, está?
A mulher pôs-se a chorar convulsivamente. Depois de algum tempo, com Arnaldo silencioso a observá-la, recompôs-se; respirou profundamente e respondeu:
- O Tonho não volta mais, meu cunhado. Saiu uma noite para a pescaria e quando o trouxeram já estava morto. Disseram que foi um mal súbito, que nada puderam fazer.
Arnaldo segurou-se para não demonstrar o abalo que sentira. Ficou por um mínimo tempo em silêncio e perguntou pela mãe:
- E mãe? O que é feito dela?
- Morreu pouco depois que você partiu. Durante um tempo ficou na roça; depois sentiu umas dores no peito e quando veio para cá procurando tratamento, não voltou mais para a casa. Enterraram ela junto do seu pai. Mas entre; fique no barracão lá dos fundos. Não precisa ter pressa em partir. Visite a sua mãe e seu irmão e, se quiser, sinta-se na sua casa.
Arnaldo lembrou-se do Doutor Reis. Ele haveria de saber o que fazer; certamente diria algumas palavras difíceis, para depois ordenar as primordiais resoluções. Entrou e jogou a mala sobre a cama. Recusou o café que a cunhada oferecera e foi dar uma volta pela cidade.
A Lapa continuava a mesma de quando descera para Minas. Uma cidade cheia de religiosidade, com suas ruas cheias de esgotos e mendigos, o cais silencioso àquela hora da noite e os cachorros cochilando debaixo dos velhos bancos de madeira.
Arnaldo não chorava. Nunca fora homem de chorar. Mas o peito doía, sentia um nó na garganta, uma tristeza enorme fazia suas pernas tremerem. Sentou-se à beira do Velho Chico e ficou olhando para o infinito. Aonde ia dar toda aquela água, em que parte do oceano? E ainda ia ela depois? Será que as almas do irmão e da mãe seguiram o curso do rio, ou foram para o céu, assim como pregavam os padres? Talvez fosse embora no outro dia. Era isso. Não tinha por quê estar ali. Voltaria para o Sarará, veria o Doutor Reis.
A lua cheia refletia-se nas águas do São Francisco. Arnaldo pensava que talvez toda aquela água fossem os choros de todas as pessoas que sofriam. Certamente que todo o mundo era tomado por dores, pessoas que sofriam e choravam sempre. Ele próprio sempre sofrera, desde quando o pai morrera, quando tivera que ir embora deixando a mãe para trás, até a morte da mãe e do irmão. A vida era um eterno sofrimento.
E enquanto sofria, Arnaldo pensava e olhava o rio com toda a sua calma, um silêncio quase assustador, entrecortado pelos peixes que vez ou outra saltavam por sobre as águas, como num show sem entusiasmo ante os tristes olhos do pobre homem.
Já era tarde quando uma menina apareceu de uma rua escura. Vestia um vestido simples e era bonita. Andava devagar, como se divagasse sobre algo. Não olhava para os lados, apenas seguia. Arnaldo ficou a observá-la sem, contudo, enxergá-la. Apenas estranhou o fato e como não pensasse em nada ficou olhando aquela cena.
Resoluta, a menina seguiu o seu caminho; entrou dentro do rio e continuou em passos lentos; depois, deixou-se afundar como se fosse engolida pelo Velho Chico. Os seus cabelos já flutuavam sobre as águas quando Arnaldo arrastou-a para fora d'água. Foi a mãe quem o ensinara que todo afogado deve ser retirado pelo cabelo, para não levar junto para a morte o salvador.
Ambos entraram no barracão sem que a cunhada os visse. Ela já estava dormindo e Arnaldo, com a menina nos ombros, entrou sem fazer qualquer barulho. Deitou-a sobre a cama, tirou-lhe a roupa molhada e cobriu com o único lençol que tinha encontrado por ali. Ainda sem qualquer pensamento, preparou um cafe, sentou-se à mesa e pôs-se a tomá-lo. Pensou em dizer alguma coisa quando ela acordou e durante um tempo ficou a observá-lo, mas, como adormecesse novamente, continuou o seu café.