segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

DINA E CANDINHA (de volta ao Romance)

Dina tem ensinado Candinha fazer coisas diferentes na cozinha. Ontem, pela primeira vez, comi um bolo de mandioca com queijo, o qual a mulher de Tonico chama de João Deitado. É bastante gostoso, apesar de, talvez pela imperícia da minha esposa, vez ou outra eu ter encontrado pedaços de palha de bananeira dentro do bolo, sendo que a mesma deveria apenas envolvê-lo.

As duas passam boa parte do dia confabulando junto ao fogão de lenha, fazendo bolos, biscoitos, doces e um monte de novidades, as quais me cabe experimentar. Os meninos de Tonico passaram a tomar conta das coisas em casa, enquanto o pobre homem prepara o almoço entre os deveres do Sarará.

Não tenho cobrado maiores esforços do Caseiro e, com a tranquilidade que estamos gozando, ordenei aos meus homens que ajudem nas lidas com o gado e os outros serviços de maior monta. A verdade é que as lembranças e os temores com o Arnaldo vão aos poucos desaparecendo da minha mente, trazendo de volta a confiança que tinha desaparecido.

Hoje me peguei observando Dina e Candinha encostadas ao fogão. Ambas preparavam o almoço, enquanto Maria varria as folhas do quintal. A minha esposa não tinha se dado conta de que eu estava por perto e conversava amenidades. A esposa de Tonico havia percebido a minha presença e, pode ser apenas impressão, sorria com o canto da boca, enquanto parecia me olhar de soslaio.

Preferi não ficar por muito tempo na cozinha. Tirei o pigarro da garganta a fim de chamar a atenção e as mulheres me olharam com caras de espanto; Candinha veio, deu-me um beijo e voltou para os seus afazeres. Peguei a garrafa de pinga no armário e fui para a varanda, enquanto Dina continuava a me olhar. Antes de sair, virei-me uma última vez e ela me pareceu piscar um dos olhos. O Tonico é mesmo um homem de sorte.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

O MENINO NO RIACHO


O menino vinha correndo que nem doido e pulava na água. Tchibum! Sumia por um longo tempo para depois reaparecer quase na outra margem do riacho. Saía pelo outro lado, ia até os pés de pau lá em cima e vinha correndo para pular de novo.

- Menino doido, toma cuidado na hora de pular!

O menino não ouvia os pedidos da avó. Apenas se divertia com aquilo, correndo e pulando na água; mergulhando de um lado e saindo do outro, debaixo daquele sol escaldante da tarde.

Leonardo, deitado na grama, olhava o filho pulando no riacho e lembrava a sua infância. O menino era ele de novo, com as mesmas estrepolias, deixando a avó doida. Ele também ficava correndo de um lado para outro, pulando, mergulhando, pescando piabas com a camiseta servindo de rede, enquanto a mãe lavava roupas na pedra lá em cima.

- Leandro, escuta a sua avó; toma cuidado e não pula de ponta, nesse canto aí tem muita pedra!

O menino vinha correndo, dava um salto mortal, virava no ar e caía em pé, até afundar por completo. Se a mãe dele estivesse junto, já tinha ficado doida; tinha xingado o menino, pegado pelo braço e colocado de castigo, sentado junto dela.

- Amanhã o moleque tem que ir embora, né, Leonardo?

Ele não respondeu. Ficou olhando por um longo tempo para o menino correndo e pulando no riacho. O menino tinha o sorriso de Beatriz. Que Deus o livrasse, que não tivesse o coração igual ao dela: um coração de pedra.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

TARDELLI JÁ ESTÁ ASSINADO COM O GALO

-Tardelli já está assinado com o Galo.

Tuca era sonhador, por isso, nem dei atenção. O cara era um verdadeiro nostálgico, sempre sonhando com a desaposentadoria do Gaúcho, a volta do Bernard, o retorno glorioso do Cuca. Sobre o Tardelli falava quase que diariamente.

- Agora não é ilusão, professor. Quem me disse foi o Rafael, e você sabe que ele é fonte quente!

- Sei! Do mesmo jeito, ele tinha dito a você que o Bernard voltaria ao Galo... - A minha vontade era pular na goela do sujeito. Mentir sobre o Bernard tudo bem; mas sobre o Tardelão eu não aceitava.

- Eu não menti sobre o Alegria, professor.  O negócio foi que deu bode, uai. O Rafael me disse depois, um diretor fez a cabeça do empresário do menino, e ele preferiu deixá-lo um pouco mais na Europa. Mas ele ainda vem. Ele ainda vem.

Eu já ia virando as costas para não dar uns sopapos no mentiroso, quando ele segurou o meu braço e disse confiante:

- Pode anotar e depois me cobra. O Diego já assinou; foi um pedido do Duda. O técnico já até esboçou o time com ele no lugar de Cazares, que, também já está certo, vai para o Palmeiras.

- Mas ele nem é um 10, como vai ficar no lugar de Cazares?!

Tuca não se intimidou. Olhou fixamente nos meus olhos e continuou:

- Eu não disse que nele será como o Cazares! Apenas ficará no lugar dele, ocupando o posto de medalhão do time. Tardelli vestirá a 10, mas não terá posição fixa e, assim como na Libertadores, flutuará da esquerda para a direita, trocando posição com o Chará, que não vai embora, tabelando com Lucas Lima, que fará as vezes do Gaúcho; municiando Pratto, que também voltará ao Galo...

Minha paciência chegou ao fim de vez. Virei as costas e saí, enquanto o meu amigo, já aos gritos, vaticinava:

- Pode anotar, esse vai ser o maior time que o Galo já terá montado. Ainda mais depois que o Cebolinha também chegar. Pode perguntar pro Rafael!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

PAPAI NOEL

- Mãe, Papai Noel e existe?

- Claro que existe, meu filho. É um velhinho de barba branca e roupa vermelha, que entra pelas chaminés nas noites de Natal e deixa presentes para as crianças boazinhas.

- Mas e quando não tem chaminé, ele não entra?

- Entra pela janela, uai... Na verdade, ele, se quiser, pode até diminuir de tamanho, igual ao Chapolin quando toma a pílula para encolher, lembra? Daí ele entra por debaixo da porta.

- Então a gente tem que tirar as ratoeiras, ne, mãe? Pois aqui não tem chaminé.

- É mesmo...

- Mãe, e por que ele vem de trenó? O mundo é muito grande pra ele ir de casa em casa, é um monte de crianças pra uma noite só.

- Ele é mágico, meu filho. É como se ele fizesse o tempo parar, até terminar de distribuir os presentes. Daí, ele destrava o relógio e tudo volta ao normal.

- Mas, mãe, se o tempo para e ninguém vê o Papai Noel, como a gente sabe que ele é um velhinho de barba branca e roupa vermelha?

- Porque, de vez em quando, ele toca em algumas crianças, aquelas que foram realmente boazinhas, só pra elas o virem e abraçarem, e essas crianças contam para as outras como ele é, entendeu?

- Entendi. Mas, mãe, minha professora de Catecismo disse que Papai Noel não existe e que no dia vinte e cinco a gente tem que comemorar o nascimento de Jesus...

- Religião é muito complicado, meu filho. Vamos dormir, que já está tarde. Senão o Papai Noel não vem.

domingo, 22 de dezembro de 2019

CRENÇAS


Fazia uma semana que o menino estava de cama, meio perrengado, sem querer comer, amarelo e emagrecendo a olhos vistos.

- Tem que levar o menino pra benzer, Manel. Com certeza, isso é quebranto.

Secando-se na toalha encardida, ele pensava o mesmo. Era até bom, pois aproveitaria e se benzeria da espinhela. Fazia tempo que as costas estavam doendo, desde que tinha ajudado Chiquim tirar o forno de carvão; e tudo por uma mixaria.

- Amanhã. Depois que eu tirar o leite, levo o menino lá. Aproveito e peço Sá Luça pra me benzer também. Já não estou aguentando a dor nas costas.

- A gente tem que ir na carroça. Eu também preciso me benzer. Arrumei um cobreiro aqui no braço, olha. É culpa dessas lagartixas; com certeza, uma dessas passou em cima de mim enquanto a gente dormia. Já não aguento mais esse tanto de bicho aqui em casa.

Seria melhor que ela ficasse e preparasse o almoço. Mesmo que saíssem de manhãzinha, só chegariam de volta depois das dez, muito tempo depois da hora de comer. Mas, não teria coragem de falar com Maria. O jeito era ir  o mais rápido que a carroça pudesse e voltar com a barriga roncando de fome.

À noite, enquanto o menino dormia no canto da cama com a mãe admirando a sua beleza (mesmo perrengado, ele era muito bonito. Maria tinha razão, ele devia estar com quebranto), Manel sentia as costas doendo, enquanto duas lagartixas brigavam por causa de uma mariposa que descansava na parede.

- A chuva não demora, Maria. As mariposas já estão começando a aparecer.

Maria não respondeu; apenas deu um beijo no menino, que, graças a Deus, não estava com febre; coçou o braço cheio de botucos e fechou os olhos. Manel não conseguiria dormir tão cedo e se contentava em ver as lagartixas correndo de um canto a outro da parede.

sábado, 21 de dezembro de 2019

ESPERANÇA

- Oou, Princesa! Passa, Malhada! Passa, Esperança... Oou! 

Elas seguiam, uma atrás da outra; entravam no curral e ele fechava o colchete. O banquinho ficava pendurado de lado, próximo ao jiral onde o balde descansava de cabeça para baixo.

- Passa, Esperança. Ou, ou, ou! - alisava a cabeça da bezerra e soltava-a na manga. 

Princesa e Malhada esperavam preguiçosas pela ordenha, enquanto comiam a ração que Luís tinha depositado no coxo. Era sempre a mesma rotina, que elas já sabiam de cor e salteado.

- Vem, Malhada; encosta aqui. - E ela deixava a comida, vinha com cara de quem tinha acabado de acordar, olhava para Princesa e se encostava junto ao banco, que já estava em seu devido lugar. - Você é uma boa menina, Malhada! - E alisava a barriga dela antes de assentar.

Luis assoviava, enquanto lavava as tetas da vaca; ajeitava o banquinho para mais perto e sincronizava o assovio ao ritmo do leite batendo no fundo do balde de alumínio. Malhada também se ajeitava e ficava ouvindo a música que Luís assoviava junto com o leite que saía.

Depois, era Princesa quem se achegava. E todo o processo recomeçava. Esperança ficava junto da cerca, esperando pelas duas mães. Não queria mamar, queria mesmo era brincar, andar pelo pasto de fora, beber água na barragem lá embaixo.

 Daqui algum tempo, seria ela de quem Luís tiraria o leite e outra bezerrinha estaria no seu lugar, esperando, impaciente, que ela saísse do curral.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

INFÂNCIA

O povoado se descortinava à frente. O cavalo ia preguiçoso, balançando o rabo lentamente, enquanto o menino quase cochilava abraçado ao pai. As pedrinhas soltas eram jogadas para trás e, ao bater de encontro às outras, soltavam faíscas, em pleno sol matutino.

O mato sujo de poeira era a única paisagem que o menino avistava. Fazia tempo que não chovia e o trânsito dos Jipes, do caminhão do leite e da jardineira que ia do Pitão para Coração fazia com que os pequenos pés de paus ficassem com a cor amarronzada. E nas estradinhas feitas pelas joaninhas, besouros e lagartas, o menino via desenhos de toda espécie em cada folha.

O pai estancava o cavalo junto ao mataburros; abria o colchete e passava. Enquanto, depois de passar o arame no mourão, o velho preparava a palha para o cigarro, o menino olhava o povoado, que já aparecia nítido: umas poucas casinhas velhas, com suas pequenas janelas de madeira e portas para a rua. Ao longe era possível ver a torre da igreja por entre as mangueiras e os coqueiros.

Um homem passava rápido e gritava "Opa!"; Cachorros latiam correndo nas ruas empoeiradas; mulheres estendiam roupas nas cercas de arame. Na Gameleira, o pai amarrava o cavalo num poste de madeira e seguia para a venda. Primeiro comprariam as coisas de comer, o fumo e a pinga; depois, já sem grandes obrigações, viriam a carne, sabão e as miudezas que a mulher sempre pedia.

O menino sentava-se no banco de madeira e punha-se a olhar os movimentos. Já não cochilava; apenas esperava paciente pela hora que iriam à padaria. Era sempre assim: depois das compras, o pai tomava um trago; pegavam o cavalo e iam comprar uma bisnaga de pão. Era um pão duro e sem gosto, que o pai fazia questão de levar para comer molhado no café. Nunca se demoravam muito e, ao sair, o pai sempre lhe dava um pirulito, passava a mão na sua cabeça e sorria. E ele sentia que, de fato, era um menino feliz .

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

SALIM

Salim organizava os relógios todos alinhados no balcão de vidro. Eram relógios de pulso dos mais variados estilos e preços: dourados, prateados, de plástico, de borracha e alguns que nem mesmo ele sabia de que materiais eram feitos. 

Sobre as prateleiras ficavam os maiores; eram relógios de parede com vários retratos de santos, de famosos, de paisagens bonitas; relógios que mexiam o pêndulo de um lado para outro infinitamente, num eterno tic-tac, tic-tac, tic-tac.

As bancas, do lado de fora do balcão encostadas nas paredes deixando apenas um pequeno corredor que cabia uma pessoa de cada vez, mostravam cintos, brinquedos, bonés e algumas bugigangas de pouca ou nenhuma serventia.

A esposa de Salim passava o dia todo limpando o balcão, as prateleiras, as bancas, passando pano no chão, assoprando os relógios; enquanto ele regulava, um a um, todos os que estavam no balcão de vidro; depois passava aos da prateleira e fazia a mesma cerimônia; organizava as coisas nas bancas, para, em seguida, começar tudo de novo.

Às sete da manhã, respeitando os dias santos, o casal abria a pequena loja próximo à praça. Durante todo o dia, durante quase trinta anos, cumpriram a mesma rotina, até que, às dezoito horas, quando o sino da matriz tocava o Ângelos, abaixavam as portas e enfunavam num pequena casa na Baixa dos Guedes.

Depois de muitos anos, restaram apenas as lembranças de Salim e a esposa. Há muito, a pequena loja dera lugar a uma loja de celulares, capinhas e acessórios; enquanto a antiga casa do casal foi derrubada pela prefeitura, transformando-se num grande terreno baldio, ainda com a promessa de se tornar numa pracinha  com academia de ginástica e um bonito Jardim.

Diariamente, às dezoito horas, o sino da igreja ainda toca o Ângelos, talvez à espera de que o casal volte e abaixe novamente as portas, que já não se abrem tão cerimoniosamente como antes.

domingo, 15 de dezembro de 2019

PARTIDA

A esposa nunca quisera ficar na roça. Viera a contragosto, trazida na garupa da mula, chorando abraçada às suas costas . Ele sabia da estima que ela lhe tinha. Não era amor o que sentia; antes, era somente gratidão por tê-la tirado das amarras dos pais.

Começaram a se olhar numa noite de festa, na casa de Odorico. Dançaram uma única vez e ele já estava apaixonado. Agora sabia, ela não o amava, mas tinha visto, àquela hora, a sua grande chance. Ele era trabalhador e tinha boa aparência; os pais não se oporiam a esta união.

Casaram-se em pouco tempo. Ele trabalhava numa carvoaria enorme e teria serviço para longo tempo; por isso, combinaram de morar junto dos fornos, num ranchinho mal acabado, com fogão de lenha e um velho jiral, onde dormiriam felizes, aconchegados. Enquanto isso, ele reuniria o dinheiro necessário e lhe daria um sítio, com cavalos e galinhas, uma casa enorme e a vida que ela sempre quisera.

Ela não tivera paciência e partira. Era uma madrugada de lua alta. Ele dormia e sonhava. E no seu sonho, ela era uma princesa, morava num palácio enorme e esperava pelo príncipe encantado. O cavalo branco parava de frente ao palácio; ela descia pelas escadas; montava na garupa e iam, ambos sorridentes, pela estrada , até sumirem no horizonte. Enquanto isso, ele olhava, todo sujo de carvão, com os olhos cheios de lágrimas.

Ela abriu a porta devagar. Montou no cavalo; abraçou-se ao seu amado e se foi. Ao longe, antes de virar a curva, ainda olharam para trás. No ranchinho, apenas o silêncio da madrugada e os sonhos. Ela sentia-se como se o tivesse traindo, mas o amor falava mais alto. E, por isso, sorria.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

LEMBRANÇAS

Os carros desciam em alta velocidade, enquanto as mulheres subiam pela rua puxando os meninos pela mão. Do alto do prédio, ele observava o amanhecer. Ainda não eram sete horas, mas a cidade já estava em movimento.

Na próxima semana tudo estaria mais calmo. As aulas estavam acabando, as mães poderiam dormir um pouco mais e as crianças viveriam, por quase dois meses, o tédio de ficar trancafiadas dentro de casa.

O café estava forte, assim como ele gostava; a broa esfarelava na boca, enquanto as lembranças vinham à sua mente. No seu tempo de criança tudo era bem melhor. E isso não era choro de algum nostálgico. Ao contrário, era um homem cheio de modernidades, que sempre cria no futuro e contava milhões de planos à frente.

A cidade não tinha tantos carros; os ladrõezinhos eram conhecidos, e se satisfaziam em roubar galinhas ou coisas de pouca monta; as pessoas não andavam tão apressadas e as crianças não se entediavam tão facilmente.

As férias prologavam-se por quase dois meses, enquanto ele e os amigos corriam pelas ruas brincando de polícia e ladrão; jogavam bola em todos os peladores de cidade; apertavam as campanhias das casas das ruas de baixo, só para saírem em desabalada carreira, enquanto os donos saíam com seus incontáveis impropérios.

À noite, sentavam-se todos os meninos na calçada, à porta de casa, para contarem histórias de terror; brincarem de cabra-cega, pique-esconde ou simplesmente para contar as estrelas, sob o grande risco de contraírem enormes verrugas.

Um carro parou na porta e buzinou. Os homens já desciam para o serviço, contando piadas, assoviando as mocinhas que voltavam pra casa com sacolas de pão, rindo das mulheres que lutavam contra o vento para segurarem os vestidos que teimavam em voar. 

A namorada desceu do carro, olhou para cima e fez sinal de que já estavam atrasados. Ele acabou de tomar, rapidamente, o seu café; pôs o copo sobre a pia e desceu. Ao fechar a porta, ainda pôde ver, de relance, que um menino feliz relembrava, olhando para a rua, toda uma infância de liberdade.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

CAETANA

O cavalo seguia com dificuldade, enquanto Alfredo tentava se manter sobre a sela. A água descia forte lá de cima, passava sobre a calçada da casa amarela e vinha bater violentamente contra o meio-fio da rotatória. Depois, ia rua abaixo até o pontião, onde se juntava à água da lagoa.

O cavaleiro tentava não olhar para o chão, fixando os olhos ora na sela ora no horizonte. O estômago vazio doía; as mãos tremiam e a boca estava seca. Deveria ter trazido uma garrafinha de pinga, mas, desde que Caetana o fizera dormir no paiol, nunca mais teve coragem de embebedar na sua frente.

Talvez devesse mesmo ter ficado no boteco, esperando que a chuva passasse. Mas, daí, teria que voltar à noite, com o perigo das onças no Guará, ainda mais bêbado, tendo que aguentar depois as aporrinhações da esposa. O melhor mesmo era ir embora debaixo da chuva, com medo dos relâmpagos e dos trovões.

Parou debaixo da mangueira e, olhando a lagoa, tirou o fumo do embornal e pôs sobre a palma da mão esquerda; pegou uma palha e começou a alisar com o canivete; cortou-a como que cheio de arte e pôs-se a picar o fumo. A mãe sempre dissera para não ficar debaixo de árvore em dias de chuva, ainda mais com raios. Tinha que fazer um pito, antes de seguir e, ali, apenas alguns poucos pingos caíam sobre o chapéu de palha.

As lembranças vinham à sua mente, enquanto fumava o roleiro. Caetana era uma menina bonita, tímida e cheia crenças, mas a vida a tinha transformado naquela cobra sem coração. Pobre dos meninos, ainda bem que já estavam todos crescidos. Logo as meninas casariam e os meninos sairiam para o mundo. Daí também ele sumiria, e Caetana ia ver o quanto ele fazia falta na vidinha dela.

Jogou a bituca no chão. Pisou forte para apagar a brasa que restava; montou no cavalo e seguiu, com a boca seca e cabeça doendo. Um raio cortou o céu e depois veio o trovão. Já vai, Caetana! Já vai!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

SONHOS

A vontade era de mandar o coronel catar coquinho. Onde já se viu, um voto em troca de um gabiru! Só não o fez por causa da esposa; se não tivesse se controlado, a pobrezinha ia perder o seu emprego.

Luis sentou-se no degrau da porta e ficou olhando para o horizonte. Se tivesse pensado melhor, tinha ido embora pra São Paulo, junto com os irmãos. Não é que eles estivessem ricos, mas estavam todos remediados. Vez ou outra mandavam cartas contando as novidades e pedindo para mandarem os meninos, assim que eles se dessem por gente e aguentassem trabalhar.

O mais velho não tardaria partir. Pegaria a jardineira e ia ter com os tios. A esposa já estava ciente disso, que se acostumasse logo com a ideia de ficar longe do filho. Sofrer nos longes da cidade grande era melhor do que ficar padecendo nas garras do coronel.

Agora teria que votar no candidato do velho. O santinho do desgraçado estava guardado na gaveta, junto do martelinho de quebrar cristal e da caixinha com o baralho. As eleições não demoravam e era preciso só colocar o papel dentro da urna. O homem tinha dito que o santinho era só pra  saber em quem estaria votando; a cédula, Borjão lhe entregaria na boca da urna, sem que ninguém visse.

Podia até ser que ninguém visse, mas todo mundo sabia. Era sempre a mesma coisa, todo mundo reclamava, mas acabava votando no candidato do coronel. Quem não era seu empregado, ganhava um bezerro; os outros eram obrigados pelo risco do serviço ou , então, pelas indicações feitas ao paço municipal.

Luís respirava fundo e imaginava o futuro, quando tudo seria diferente. Com certeza, os netos seriam homens livres, estudados e sem qualquer amarra, e, mesmo na roça, todo mundo poderia escolher em quem votar, sem a obrigação do emprego, da indicação, da permuta em bicho, comida ou dinheiro. Por enquanto, só lhe restava engolir a raiva e sonhar, enquanto, no radinho da cozinha, Zé Bétio tocava uma bonita canção.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

PEDRELINA (Um hiato no Romance)

Sentada sobre o fogão, Pedrelina limpava os dentes com o último naco de fumo, que passava nas cinzas que ela havia puxado com um pedaço de brasa. A vontade de tomar um trago era quase incontrolável, mas tinha prometido a Teodoro que não beberia durante a Quaresma, ainda mais depois da vergonha que tinha passado da última vez, quando assistiam ao jogo  no campo de Paulão e o marido teve que levá-la para casa deitada no jiral da carroça.

Teodoro também não estava bebendo e isso a fazia manter a promessa. Às vezes, quando ele estava na roça, limpando os matos ou matando as pragas do feijão, ela pensava em beber escondido; mas se tomasse um gole, já sabia, não conseguiria mais parar; por isso, o melhor era não cair na tentação.

O marido estava deitado, fumando o cigarro de palha, que tinha acabado de acender com a binga. No outro dia, teria que ir ao Pitinha; precisava comprar fumo, rapadura e querosene pra lamparina. Era pegar com Deus para que a chuva continuasse caindo, senão o feijão não vingaria e até isso teria que comprar na venda.

A luz da lamparina mexia de  um lado para outro, formando desenhos no branco da parede. Enquanto pensava, vestido apenas com um short Adidas que tinha comprado na Lapa, na única vez que tinham viajado de Pau de Arara numa viagem tão demorada (Foi mais de uma semana, dormindo na beira da estrada, comendo farofa, biscoito e tomando café ou pinga), Teodoro imaginava coisas.

As sombras formavam bichos, ferramentas de trabalho, mulheres bonitas, que ele imaginava saltando da parede e deitando ao seu lado. Depois se continha e prestava atenção para ver se Pedrelina estava vindo. Mulher valente da peste; se o pegasse pensando naquilo, daria logo um fim na sua história.

Alheia aos pensamentos do marido, Pedrelina cochilava sobre o fogão, com o fumo cheio de cinzas sujando os dentes. De repente, assustou-se com o crepitar  de uma brasa; levantou-se do fogão; deu uma cusparada para tirar o gosto da boca; pegou um copo d'água no pote; gargulejou e foi dormir. No caminho até o quarto, deu uma olhada nas crianças, que dormiam numa rede no chão da sala e pensou: se não fosse a cachaça, nada disso existiria.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

DINA

Hoje estive observando a mulher do Tonico. É já uma senhora, talvez com seus quarenta e poucos anos, maltratada pela lida na roça, com o rosto sofrido, pele queimada, mas ainda bonita de corpo. Talvez tenha sido uma bela moça e, tivesse nascido e se criado na capital, encheria os olhos dos moços que passeavam pela Afonso Pena nos fins de tarde, procurando pelos brotinhos com seus rostinhos meigos e corpos definidos.

O Tonico não fizera uma má escolha. Dina - Leodina - é uma mulher recatada, que vive apenas para o marido e os filhos . Dizem que Tonico casou com ela quando ambos já contavam mais de trinta e, por isso, os filhos saíram mirrados, fraquinhos e pouco inteligentes.

Sentado na varanda, vejo Dina passando de um lado para outro. Mal cumprimenta com um balançar de cabeça; tem os olhos sempre baixos e o andar preguiçoso. Vai até a horta e pega sempre as mesmas coisas: folhinhas verdes, abóbora, maxixe e pimentão; desce até a cacimba e pega água para o almoço e fica o resto do dia enfurnada, cuidando dos afazeres domésticos.

Ultimamente, tem puxado assuntos com Candinha. Primeiro foi a minha esposa quem a tinha procurado para consertar umas roupas velhas, que estavam precisando de pequenos reparos e, por fim, as duas começaram a se aproximar. Isto não me preocupa, e já penso mesmo em chamar a mulher para trabalhar dentro de casa em companhia de Candinha.

Tonico não se oporá, será mais um ganho para a família. Com o tempo, eles poderão comprar o sítio que tanto querem ou, quem sabe, pode ser que eu deixe-os ficar num cantinho do Sarará, daí o dinheiro servirá para o futuro dos moleques. Pode ser que algum deles se torne alguém na vida.


Enquanto beberico a minha pinga com remédio, penso na família de Tonico; talvez, um dia, Candinha e eu também formemos uma família grande, com um monte de crianças correndo pela casa. Talvez.

domingo, 1 de dezembro de 2019

O SONHO DE REIS

Acho que fiquei cismado com a morte dos filhos de Tião e, por isso, essa noite me foi cheia de pesadelos. Candinha assustou-se com os meus berros e, depois de me acordar, foi até a cozinha fazer um chá de camomila, pois eu tremia a e suava feito louco. Depois me abraçou e, sem perguntar com o que eu havia sonhado, acariciou meus cabelos até que eu dormisse novamente.

Era uma manhã de sol. Candinha já estava na cozinha preparando o café adoçado com rapadura quando me levantei. Fiz minhas ablações e sentei-me na varanda, de onde observava o gado pastando na manga em frente. Tonico já havia tirado o leite e fazia os queijos na casinha dos fundos, enquanto o seu menino mais novo brincava de campear os cachorros no pasto.

A minha esposa do Arnaldo trouxera o café com broas de milho e cabos de machado; assentara-se ao meu lado e começou a bebericar, enquanto me falava amenidades. Conversamos por um tempo, até que a esposa do Tonico me viera chamar; disse que o marido estava precisando de coalho para terminar os queijos e que se demorasse perderia toda a produção do dia.

Achei estranho que logo a esposa me viesse falar. A dona de Tonico quase nunca saía de casa, sempre era o marido quem falava por ela; era uma mulher arredia, avessa às socializacões. Ainda assim, não atinei que pudesse estar tramando algo. Antes que eu a indagasse, afirmou que o marido estava às voltas com o leite, lutando para que não o perdesse e, por isso, tinha mandado-a ter-se comigo.

Os três homens ainda estavam dormindo, pois ficavam rondando pelo Sarará durante toda a noite, vigiando a chegada de estranhos. Pensei acordá-los, mas achei que não seria de bom tom fazê-lo, além disso, ainda era bem cedo e ninguém haveria de estar de tocaia àquela hora. 

Desci até as baias, arrumei o cavalo e desci para o Pitinha. Candinha me olhava da varanda, com  sorriso nos lábios, enquanto a esposa do Tonico parecia tensa ao seu lado. Não me demoraria, compraria o coalho e logo estaria de volta em casa. Minha esposa não tinha por quê se preocupar.

Talvez eu tenha andado um quilômetro ou pouco mais. A estrada estava silenciosa, sem nem ao menos os pássaros cantarem. Não havia vento àquela hora; contrário aos dias anteriores, seria um dia de sol forte, bom para as roças darem uma respirada. Um alívio para o pasto e um descanso para os bichos.

Eu assobiava uma música qualquer, quando, de repente, um tiro. Tudo parecia rodar e, sem ter como me segurar, caí bruscamente do cavalo, que saía em disparada de volta ao Sarará. Um homem soltou um grunhido, fazendo o bicho estancar; amarrou-o num pequizeiro e acariciou a sua crina. Depois veio caminhando lentamente para o meu lado, com uma arma em punho:

- Bom dia, Doutor Reis. Sentiu saudades de mim? Soube que estava me procurando, depois que os filhos de Tião tentaram me matar. E Candinha, tem cuidado bem dela?

Aquela voz não me era estranha. A vista estava embassada, pois eu havia caído com a cara no chão. Aquele só podia ser o Arnaldo, que tinha vindo se vingar. Tentei dizer alguma coisa, mas a voz não saía; esforcei para me levantar, mas não tinha forças. Resignei-me ao meu fim e comecei a rezar silenciosamente, lembrando-me de Candinha sorrindo na varanda.

- Não se preocupe, Doutor. Isto não vai demorar. O senhor vai logo se encontrar com o seus dois capangas; Joaquim e Luciovânio já devem estar esperando pela sua chegada. Tonico deu um jeito nos seus homens e, quanto à Candinha, pode deixar que darei a ela um fim digno, assim como aquele que ela queria e eu não deixei. 

O homem se benzeu, olhou para o céu, empunhou a arma novamente e atirou. Foi quando Candinha me acordou. Meu coração parecia saltar pela boca e uma sensação estranha tomava o meu corpo. Era como se aquilo tivesse mesmo acontecido.

ARNALDO E A MORTE DOS FILHOS DE TIÃO

Joaquim e Luciovânio estavam trabalhando numa fazenda em Baluarte, fazendo carvão para um fazendeiro recém-chegado da capital. Dizem que é funcionário  público aposentado, parece que trabalhava no INAMPS, ou órgão parecido.

De acordo com Tonico, que trouxera as informações do Pitão, onde tinha ido, a meu mando, procurar homens fortes para trabalhar e que tivessem coragem de atirar, o homem queria investir boa parte do dinheiro que acumulara no alto cargo do funcionalismo público na criação de gado leiteiro e, para isso, precisaria desmatar quase toda a terra que havia comprado. Por isso, tinha chamado os filhos de Tião de Noca.

Os irmãos, conforme palavras de Tonico, tinham contratado os serviços de mais três homens no Pitão, carvoeiros velhos, cachaceiros inveterados. Assim, o serviço andava sem muita pressa, entre bebidas, cigarros e mulheres. Seu Rodrigues, o dono da fazenda, também não se aperreava; andava às voltas com uma separação, pois, dizem, havia encontrado a mulher na cama com o porteiro do apartamento onde morava, num dia em que tinha voltado mais cedo do serviço.

Parece que o fatídico acontecimento com os dois irmãos se dera num sábado ou domingo, quando os três homens estariam de folga nas suas casas, para reverem as mulheres e os filhos. Ainda segundo Tonico, os homens na praça da igreja disseram que os dois estariam bêbados e que ao acenderem o fogão para esquentar um tiragosto acabaram por adormecer; o fogo teria se alastrado rapidamente, pois o rancho era todo feito de paus e palhas, além do querosene estocado para as lamparinas.

Essa, para Tonico, seria a versão mais plausível que havia. Existiam outras, que andavam de boca em boca, dizendo que teriam sido mortos por algum marido traído; que Joaquim teria matado o irmão, depois de um porre de cachaça, por causa de um último pedaço de carne e, depois, colocado fogo no rancho, matando-se no meio das chamas; que um raio tinha caído no barraco e matado ambos no fogaréu.

Ninguém se lembrou do meu amigo Arnaldo. Todos acreditam que ele esteja mesmo morto, já não havendo nem mesmo os ossos do desgraçado. Mas nada me tira da cabeça que pode ter sido ele quem  matou os filhos de Tião. Os irmãos eram homens vividos, espertos e demasiadamente unidos, não fariam qualquer besteira, nem brigariam entre si. Por via das dúvidas, pedi aos homens para ficarem alertas e, caso apareça algum desconhecido no Sarará, tasquem fogo no diabo.

Apesar de todas as precauções, confesso o meu medo; por isso, tenho evitado sair da fazenda. No Pitinha, só vou em casos de última necessidade, para cuidar de doença e comprar as coisas de maior monta. Mesmo assim, levo junto dois homens armados,  ordenados para atirarem em qualquer mínima suspeição. Candinha, por ordem minha, não tem saído do Sarará e, mesmo na fazenda, só anda acompanhada por Maria, sob o meu pretexto de que existem relatos de ladrões rondando por estas bandas.

A pobre mulher não fez qualquer indagação. Recebeu as minhas ordens e logo as assimilou. Fica quase todo o tempo na cozinha, fazendo bolos de fubá, de cenoura; biscoitos de toalha, Xiriri, doces  de mamão, de leite, de goiaba; preparando as comidas que saboreio sempre depois de uma boa dose de pinga. Ela não fala do Arnaldo, mas sei que também se lembra do meu amigo. 

As memórias do desgraçado ainda estão quentes na minha mente. Lembro-me das nossas conversas na varanda; das pingas que tomávamos, enquanto ele escutava as minhas filosofias, sempre assentindo com a cabeça, por baixo do chapéu velho de massa; da sua conversa mansa e respeitosa, sempre me dizendo coisas de muito tempo. Sinto saudades do meu amigo; mas, pela sua minha esposa, tenho que me precaver. Vai que ele resolve aparecer!

sábado, 30 de novembro de 2019

MELHORAS

Faz um tempo que não escrevo nada . Tem me faltado tempo, assim como também tem me faltado ânimo. Vem chovendo bastante e as roças estão vingando aos poucos; ainda não será uma grande produção, mas tudo tende a melhorar. Tonico é um bom homem, trabalhador; parece que nas mãos dele tudo há de prosperar. Não vai muito tempo e o Sarará retomará os tempos de glória que meu pai plantou.

Com as chuvas, a boa vontade dos bancos  parece ter aumentado. Consegui um bom empréstimo, que pagarei com juros mínimos, em pequenas parcelas. Como garantia, coloquei o Sarará; mas logo retomo as rédeas e pago a dívida. Candinha não queria que eu pegasse o empréstimo, mas expliquei tudo o que pretendia fazer e, embora eu visse que não entendera quase nada, assentiu meio ressabiada, dizendo que eu sabia o que estava fazendo.

Falei com ela à noite, enquanto estávamos deitados, acariciando os seus cabelos, ela respirando fundo, pensando em tudo o que eu sonhava. É verdade que não desisti de ir embora para a capital, levar Candinha, fazê-la uma dama na sociedade; mas, com a chuva e sem o Arnaldo, talvez dê para ficar mais um tempo, até que a seca chegue de novo e tudo tenha que ser recomeçado.

O meu amigo não deu qualquer sinal; acredito que tenha mesmo morrido. É verdade que ainda sinto a sua presença; não digo que em sonhos ou lembranças, pois a presença de Candinha me enche de prazer e me faz esquecer as boas lembranças do pobre diabo. A presença que sinto é bastante física; vejo o vulto do Arnaldo próximo a casa, ouço a sua voz ao longe, passos em redor. Os cachorros, às vezes, latem à noite, sem que ninguém esteja por perto. Não são latidos de raiva, mas resmungos saudosos  de alguém que aparece depois de muito tempo. Saio, a contragosto da minha esposa do Arnaldo, e, sem ver nada, retorno assustado para dentro.

Creio que tudo isso não passe de cismas minhas, mas, como de tudo devemos desconfiar, depois que peguei o dinheiro tratei logo de contratar mais homens para o Sarará. Disse que seriam braços para a lavoura, mas não passam de seguranças para Candinha e eu. Os filhos do Tião já não existem. Misteriosamente, morreram queimados numa choupana, pelos lados do Baluarte, onde estavam trabalhando para um fazendeiro. Não pensaram no Arnaldo; mas a sua lembrança logo me veio à mente.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

DIAS MELHORES

Faz um mês do desaparecimento do Arnaldo. Não me arrependo do que fiz, mas, confesso, sinto saudades do meu amigo. Às vezes sinto a sua presença e até penso tê-lo visto em um canto ou outro do Sarará. O corpo dele não apareceu, talvez tenha sido comido por alguma onça ou outro bicho do mato. 

Foi Maria quem viera com este pensamento: Arnaldo não estaria morto; teria fugido para a Lapa, de onde haveria de voltar algum dia. Quem tinha dito isso a ela foram as mulheres que frequentavam o culto na casa de Liodina. Diziam que Andrelino, o filho de Sá Lúcia, tinha encontrado com o homem, baleado, no meio do mato e, contrariando a promessa feita  ao meu amigo, contara o ocorrido a Sebastiana, sua esposa, que tratara de espalhar a notícia.

Assim que eu soube da notícia, procurei o fuxiquento, que desmentiu tudo. Disse não terem falado nada, nem ele nem a esposa. Que era tudo invencionices do povo. Por via das dúvidas, antes que o homem falasse mais alguma coisa, mandei recado a Joaquim e Luciovânio, que logo deram fim em Andrelino e sua esposa.

Seguindo a indicação do meu amigo Tião, contratei o Tonico para o lugar de Arnaldo. Não é homem de muitas palavras . Casado, trouxe a esposa e dois moleques para o Sarará. Meninos ainda pequenos, catarrentos e barrigudos. Tonico morava próximo à fazenda do Tião e contara com a força do velho para se arrumar, embora não tivesse qualquer ligação com a família.

Para que Tonico e sua família pudessem se acomodar, tive que trazer Candinha para dentro da minha casa. Com alguma dificuldade, consegui convencê-la da necessidade da mudança e, como justificativa, dentre outras, empreguei-a como auxiliar de Maria.

A verdade é que com a chuva caindo de bom grado, as roças plantadas pelo Arnaldo têm ganhado sobrevida e, provavelmente, depois de muito tempo, o Sarará terá uma boa produção. Talvez seja o início de uma nova era, de grande prosperidade. E, conforme espero, com a esposa do meu falecido amigo se transformando em minha esposa. Por enquanto, apenas um sonho, que acredito, não esteja tão distante.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

A VOLTA DE REIS

Foram três dias longe de casa. Um velho amigo do meu pai me dera o pouso necessário. Eu tinha dito que iria ver uns gados pelos lados de Baluarte, mas, sobre o pretexto das fortes chuvas que caíram, fiquei por três dias em sua casa.

A saudade de Candinha era dolorosa para minha alma, mas eu precisava me manter firme, demonstrar interesse na procura do meu amigo. A verdade é que não me interessava nem um pouco que o mesmo fosse encontrado. Se vivo, seria um atropelo justificar a tentativa de homicídio; se morto, seria uma eterna lembrança, um fardo a separar Candinha de mim.

Enquanto estive na casa de Gilermando, o amigo do meu pai, fui tratado com todas as pompas e circunstâncias; ainda assim, nunca estivera satisfeito. Faltava-me a felicidade, doíam-me as saudades de Candinha. Por isso, no terceiro dia, saí ainda de madrugada, contra a vontade do velho, quase em desespero.

A viagem parecia não ter fim.  As lembranças misturavam-se na minha cabeça. Lembrava-me do meu amigo Arnaldo, das nossas conversas na varanda enquanto tomávamos café com bolo de fubá ou uma dose de pinga com tiragosto. E as imagens misturavam-se com a esperança de que Candinha me esperasse junto à entrada do Sarará, que viesse ao meu encontro, me abraçasse, já se esquecendo do falecido.

Candinha não estava na cancela; não viera me esperar. Meu coração bateu forte e uma enorme tristeza tomou a minha alma. Retomei a minha coragem e continuei o meu caminho. Imaginei a esposa do meu amigo jogada sobre a cama, chorando, ainda gritando pelo pobre diabo. E isto me causava raiva, uma grande raiva do Arnaldo.

domingo, 17 de novembro de 2019

O DIA SEGUINTE

O dia amanheceu chuvoso. Candinha levantou-se bem cedo e eu já estava tomando o café com pães de queijo preparados por Maria. Ela disse que tinha passado quase a noite toda acordada, só adormecendo quando já era quase de manhã.

Os olhos da viúva do Arnaldo continuavam inchados e ela estava com grandes olheiras, certamente tinha chorado bastante durante a noite. Insisti que se sentasse e tomasse o café. Maria se retirou para a cozinha. Candinha não queria o café, disse que  precisava procurar o marido, pois ele ainda não tinha aparecido. Voltaria para a sua casa e ficaria a esperá-lo, pois, quando voltasse, não gostaria de vê-la fora de casa.

Eu quis dizer toda a verdade; falar que eu tinha mandado matá-lo e que ele não voltaria. Ela haveria de me perdoar e, se o fizesse, eu a convenceria a morar comigo. Não tive coragem; calei-me e deixei que ela mantivesse suas esperanças. Era preciso ter calma e fazer tudo sem precipitações, afinal, o tempo é senhor de tudo e tudo haveria de se arrumar.

Ela não quis o café. Ainda estava com a camisola da noite anterior e nem se preocupava que eu a olhasse, talvez nem mesmo tivesse notado o quanto eu a desejava. Prometi que sairia a procura do meu amigo e que não voltaria ao Sarará enquanto houvesse a mínima esperança de encontrá-lo, com vida ou não. Ela agradeceu-me com um abraço. O seu cheiro era bom e sua pele era quente, fazendo o meu peito acelerar. Depois, preparei o meu cavalo e partir rumo ao Pitão; haveria de passar uns dias por lá, até que tudo se acalmasse.

O CHORO DE CANDINHA

Já era noite quando Candinha batera à minha porta. Vestia-se de uma camisola esverdeada e tinha os olhos inchados. Levantei-me rapidamente ao ouvir seus gritos e batidas na porta, pois a negra Maria há muito dormia no seu quartinho, próximo à cozinha, como se fosse uma pedra jogada no fundo de um rio.

A esposa do Arnaldo falava desesperada sobre a demora do marido, que ele havia saído ainda de madrugada prometendo voltar antes que a noite chegasse. E ela estava maravilhosa dentro daquela roupa de dormir. Embora eu tentasse, não conseguia deixar de olhar para os seus peitinhos duros, quase perfurando a camisola, os cabelos negros descendo pelo pescoço liso, indo até próximo aos seios. Segurei-me para não agarrá-la; puxar para dentro de casa; levá-la ao meu quarto e fazê-la esquecer aquele desgraçado.

Ordenei que a mulher se acalmasse, puxei-a para dentro de casa e gritei por Maria. Enquanto a negra despertava e até que viesse à sala, tentei acalmar Candinha. Sentei-me ao seu lado no sofá e pedi que tivesse paciência; o Arnaldo ainda voltaria, talvez tivesse tido algum contratempo e resolvera dormir na fazenda do Tião. Pus a mão direita sobre a sua perna. Como eram quentes as suas pernas, os cabelinhos eriçados; senti que ela tremia; meu coração palpitava, eu tinha vontade de agarrá-la de uma vez.

Maria chegou trazendo um copo de água com açúcar, pois tinha ouvido as lamúrias de Candinha. Ordenei que fizesse um chá para a pobre esposa do Arnaldo e, enquanto ela corria para a cozinha, puxei a cabeça da viúva para junto do meu ombro. Candinha não relutou; deixou-se cair e chorando disse que não saberia o que fazer se lhe faltasse o marido.

Eu sabia da morte do meu amigo. E, embora sentisse o coração apertado, enchia-me de alegria ao imaginar a sua esposa nos meus braços, na minha cama, ao meu lado até o fim dos nossos dias. Controlei a minha euforia e, enquanto alisava os seus cabelos, sentindo os seus seios tocarem o meu peito, dizia palavras de esperança e tentava acalmá-la dizendo que esperasse até o amanhecer. Se o Arnaldo não voltasse, eu mesmo o haveria de procurar.

Os filhos de Tião deviam ter feito um bom serviço. Era para o meu amigo ter voltado antes que escuressece e se não o fizera é porque já não havia mais o Arnaldo. Nada mais poderia atrapalhar, Candinha seria a minha esposa, o grande amor da minha vida. Se ela quisesse, iríamos embora para a capital, construir uma nova vida, numa casa cheia de filhos, sem as lembranças do falecido.

Insisti para que dormisse conosco. Talvez fosse perigoso ficar sozinha em sua casa, sem a presença do marido. Ela não queria, mas, ante a minha insistência, enquanto tomava o chá de camomila preparado por Maria, aceitou passar a noite. Mandei a negra preparar o quarto de hóspedes, que fica bem ao lado do meu; Candinha foi junto e, enquanto caminhava, lentamente, ainda soluçando, eu reparei o quanto tinha as ancas largas, certamente seria uma boa parideira, um desperdício para o meu falecido amigo.

sábado, 16 de novembro de 2019

PARÊNTESES

Às vezes, parênteses são necessários para que tudo possa ser colocado em seu devido lugar. Eis, portanto, algumas explicações...

Da primeira vez, vim à São João da Lagoa, como dissera no "Juca Pessoa", contratado pela prefeitura para escrever sobre a história local. Do livro não obtive notícias, nem uma noite de autógrafos, nem um exemplar para os meus guardados. Mas disso não faço questão, pois cumpri a tarefa que me foi dada e recebi o combinado pela sua confecção.

Desta vez, vim por conta própria. Aproveitando-me das minhas férias, depois de um longo tempo vagando pelos salões dos palácios belorizontinos. Há tempos não escrevo um livro, nem faço qualquer reportagem; acomodei-me  no gabinete de um deputado, de onde tiro o meu sustento e guardo algum para a velhice, que já me bate à porta. Mas o espírito de jornalista ainda me causa arrepios e a história do Arnaldo, faz tempo, me perturba as noites de sono.

Muito do que tenho escrito até aqui não passa de fruto da minha imaginação, e disso não me orgulho em dizer. De fato, não conheci o Arnaldo, o Reis ou a Candinha e o pouco que sei de cada um são recontos de bocas alheias, alguns poucos lagoanos ( ou seriam lagoenses?), que se dizem crianças àquela época, ou que ouviram de outras bocas as histórias que falam.

É verdade que São João da Lagoa, assim como as tantas pequenas cidades norte-mineiras, é um prato cheio para aqueles que gostam de boas histórias, recheadas de poesias e encantamentos. E assim foi com o Arnaldo. Talvez eu a tenha escutado enquanto tomava uma cerveja à beira da lagoa ou nas pesquisas que fizera sobre o Juca. Pode ser que ambos tenham sido contemporâneos, embora nenhuma ligação eu tenha encontrado entre eles.

Pelo que me consta, nenhum dos personagens até aqui descritos deixara qualquer herdeiro. Desta feita, tem-se brutalmente o fim das linhagens, o fim de todas as histórias. As fazendas já não existem, embora seja possível encontrar, através do GPS e alguma pesquisa, os locais exatos de cada uma, mas já não existem as velhas casas ou coisas que remontem aos velhos tempos. O que há são pequenos sítios, com homens e mulheres simples que nada sabem do passado.

O paradeiro de Arnaldo, de Reis e Candinha não é possível precisar. Até aqui, chegamos ao instante em que, possivelmente, tenham matado o primeiro, conforme se poderá constatar nos escritos supostamente deixados pelo doutor. Em tempo, reafirmo a imprecisão em se afirmar a veracidade dos escritos, uma vez que os recebi de um senhor de jeito simples e fala mansa, que disse tê-los recebidos do pai, que dissera ter achado numa noite chuvosa, quando voltava de uma viagem que fizera ao Pitão, para onde levara um rebanho. O cansaço já lhe pesava as pálpebras e doía-lhe o corpo, por isso, embora não estivesse tão longe do Pitinha, resolvera passar a noite na velha fazenda. Tudo já era uma tapera, mas as coisas ainda estavam todas intactas dentro da casa.

‌O homem teria arrebentado a porta e invadido o casarão. Sabia da história do doutor e por diversas vezes já tinha ouvido dizer que os fantasmas tomavam conta das coisas do homem, que , diziam, também já teria falecido; mas o cansaço era maior que o medo e, por isso, tinha resolvido dormir por ali. Descansara por toda a noite e, antes de partir, pegou tudo o que via de valor e aguentava carregar. Tempos depois, venderia tudo para um homem que passara pela cidade, mas esquecera-se do calhamaço, que o filho, agora, deixava guardado numa gaveta no meio da sala.
‌Do paradeiro de Candinha, muito pouco se sabe. Alguns afirmam que ela endoidecera e saira andando pelo mundo, tendo sido vista pela última vez pelos lados de Salinas; outros dizem que ela fugiu para a beira do Velho Chico, tendo se jogado, finalmente, no aconchego eterno dos seus braços. Assim, ficam o dito pelo não dito e passemos logo aos escritos do Doutor Reis.

TOCAIA

Os filhos de Tião, Joaquim e Luciovânio, assim que saíram da fazenda, puseram-se a planejar a morte de Arnaldo. O aviso do Doutor era a senha para o combinado, o bicho já estava no mato, agora era a hora de fazer valer o faro de caçadores.

O velho tinha segurado o pobre diabo o quanto pôde, para que os filhos se arranchassem nos matos em tocaia. Deveriam andar um bom pedaço, pois tudo deveria acontecer longe daquelas bandas, para que não suspeitassem das gentes da fazenda. Pensaram logo no Gaforão, lugar ermo, cheio de mato fechado e onças. Ninguém haveria de achar o corpo do homem.

A chuva chegou de repente, mas os dois caçadores continuavam nos seus postos: Joaquim, escondido detrás de um pequizeiro, do lado esquerdo, bem junto da estrada. Do outro lado, Luciovânio deitara-se junto de uma moita de macambira, com os espinhos cheirando o seu rosto. Ficaram por horas esperando, mas valia a pena, o Doutor tinha dado uma boa paga, dissera que era herança do velho Lourenço, que dava com pena, mas que não tinha mais jeito, precisava do serviço.

Luciovânio já começava a cochilar quando Joaquim deu o primeiro tiro. Arnaldo vinha tentando segurar o cavalo, que debatia-se a cada corisco que corria no céu. O tiro do irmão tinha sido certeiro, indo direto no peito do viajante, que cambaleou sobre o animal. Por via das dúvidas, era melhor dar outro tiro. Luciovânio mirou direitinho no lado esquerdo, queria acertar o coração, mas como o desgraçado não parasse quieto, acertou um pouco abaixo, fazendo-o cair.

O cavalo pôs-se em disparada rumo ao Sarará, deixando o cavaleiro no chão. Os irmãos saíram dos seus postos e foram conferir o serviço. Luciovânio queria dar mais um tiro, o de misericórdia, que era para garantir o serviço, mas foi logo dissuadido pelo mais velho:

- Não é preciso gastar mais bala, mano. O desgraçado já está morto. Vamos tirar ele daqui, antes de escurecer as onças já dão um fim no banquete.

Arrastaram o corpo para dentro do matagal e depositaram-no debaixo de uma mangabeira. Joaquim ainda deixou uma flor sobre o peito do miserável, que era para tornar a ceia mais bonita para os gatinhos. Montaram nos cavalos e saíram sem olhar para trás. A chuva caía forte e os raios pareciam nunca acabar. A noite ainda os pegaria na estrada, mas tudo tinha valido a pena.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A CHUVA E OS FILHOS DE TIÃO


A chuva caía forte depois de muito tempo. As novenas e promessas de Candinha tinham surtido efeito. Talvez ainda desse para salvar ao menos o feijão e isto já seria de agradecer. Foi muito tempo de sol, as árvores agradeciam e os passarinhos cantavam enquanto tomavam o banho dos céus.

Relampiava e trovejava, mas Arnaldo não podia parar. Tinha que chegar em casa antes do escurecer. O cavalo ia sarapantado e a cada raio que cortava as nuvens, o homem rebolava para não deixá-lo enfiar mata à dentro. Era uma luta ferrenha com as rédeas, enquanto desfiava o Rosário; sempre tivera medo da barulheira que São Pedro mandava, mas não reclamava, bastava que chegasse logo em casa depois de todo  dia longe.

Doutor Reis o fizera sair ainda de madrugada do Sarará. Que fosse na fazenda de Tião de Noca, uma eternidade para os lados do Pitão, e desse um recado ao velho: "que mandasse  os filhos trazerem as armas no final de semana, que iam caçar".

Arnaldo estranhara as ordens do patrão, pois o mesmo nunca fora dado às caçadas, pelo contrário, dizia ser amante da natureza e contra as desumanidades com os bichos, mas, como sempre havia se postado,  não fizera qualquer indagação, e, junto do canto dos galos, selou o cavalo e partiu.

Tião de Noca era um homem velho, dono de uma fazenda em frangalhos, que em outros tempos tinha sido um grande produtor de cachaça. Diziam à boca pequena que tinha sido amigo de Lampião, nos tempos do Ceará, de onde viera ainda jovem, tendo, de acordo com algumas lendas, dado pouso ao cangaceiro e seu bando na única vez que eles passaram por estas bandas, fugindo dos homens do governo. Agora, ainda diziam, vivia dos pequenos serviços dos filhos, trabalhos sujos, pagos  adiantado, para que não restasse qualquer dúvida ou perigo.

O velho o recebera sem pompas, mas dignamente. Mandou que soltasse o cavalo na manga para que pudesse pastar até a volta, serviu um café preto com biscoitos de toalha e ordenou que esperasse o almoço. Deixasse o sol abaixar um pouco e à tarde podia partir de volta, com a confirmação dos meninos. Arnaldo não contradisse as ordens, o sol estava forte e a fome já fazia a barriga roncar.

Os filhos de Tião chegaram quando almoçavam. Pediram a benção do velho e cumprimentaram o forasteiro; ouviram da boca do pai o recado do Doutor Reis e, sem olhar para Arnaldo, mandaram dizer que partiriam na manhã seguinte para o Sarará e que não calhava qualquer preocupação da parte do doutor. Pediram a benção do pai, pegaram as armas na despensa e saíram sem se despedir do visitante, que se lembrava de Candinha e pensava no que fazia o patrão: por certo, estaria na varanda tomando pinga e olhando o tempo seco.

A chuva começara a cair no meio da estrada e o pobre diabo voltava sem capa de chuva, mas, também, quem diria que ela viria tão de repente, depois de um sol escaldante. Arnaldo não reclamava; apenas rezava e lembrava dos filhos de Tião; não tinha gostado daqueles dois, pareciam duas pestes, duas cobras prontas a dar o bote. Fortalecia a reza e punha o cavalo pra correr; besteira, naquela lama toda, logo o cavalo cansaria; voltava à toada de antes, enquanto os arrepios tomavam o seu corpo.   Tinha maus pressentimentos e, por isso, rezava mais e lembrava de Candinha e pensava no patrão, enquanto os raios cortavam os céus.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

A CHUVA

Fazia tempos que não chovia. Arnaldo olhava para o céu pensava que seria bom umas boas pancadas d'água no Sarará. A barragem lá embaixo já estava com os dias contados,  dificilmente chegaria a dezembro; dos braços de rio, muitos tinham secado e nem mesmo lama existia no lugar, só terra seca e lembranças do exagero de água que havia.

Nos tempos de Lourenço tinha muita água. Até mesmo das pedras desciam filetes, que escorriam até o rio. Os pastos estavam sempre verdes e o gado escolhia, como ricos senhores, onde tirar o de comer. Agora, sobraram poucas cabeças, reses secas esparramadas pelo chão, debaixo dos pequizeiros, sem forças para se levantar, sem coragem para viver.

Candinha fazia promessas e rezava novenas. Maria não gostava da esposa do Arnaldo, não engolia a forasteira e arrematava, consigo mesma, nos sozinhos da cozinha, que um dia ela haveria de aprontar alguma com o marido. Desde há muito percebera os olhares de Reizinho, dos quais a mulher porcamente se desvencilhava, aquilo nas lhe descia. Pobre Arnaldo! Por isso, Candinha rezava suas novenas sozinha e prometia que, se chovesse antes de findar o ano, haveria de acender uma vela na gruta do Bom Jesus. Ela não queria mais voltar àquele lugar, mas a fé lhe fazia crer no sacrifício.

Doutor Reis continuava lendo seus livros. Entretinha-se agora com o Memorial de Maria Moura, enquanto construía a heroína com a feição de Candinha. Seria ele o assassino do Arnaldo? E se ela não o quisesse, se o fizesse matar e depois o findasse também?! Candinha não seria capazes de tudo isso. Com certeza, não seria. Fechou o livro e olhou para os céus: a chuva não chegaria tão cedo. Talvez o melhor fosse esquecer a promessa feita ao velho; vender a fazenda; pegar Candinha e fugir para a capital. E isso não tardaria a consumar-se.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

REIS E ARNALDO


Sentado no velho banco de madeira, Reis olhava o pasto do Sarará enquanto tomava o seu café com rapadura e comia broas quentinhas, feitas por Maria. A negra já tinha voltado para a cozinha, daí a pouco as panelas começariam a chiar, jorrando o cheiro do tempero pela casa, aumentando a fome do patrão.

O café estava quente, redondo, assim como gostava o velho Lourenço. As lembranças do pai ainda estavam impregnadas em cada canto; às vezes ainda se ouviam os seus gritos de 'aiou' tangendo o gado que pastava bem em frente a casa ou o seu ronco na rede que agora balançava solitária na varanda, assim como em muitas manhãs de pouco sol se podia vê-lo passeando pelas roças de milho e feijão, calculando toda a produção em contas de Noves-fora. Reis sentia saudades do velho, embora não se apegasse tanto à sua falta. A distância física entre ambos fizera com que as afeições do filho para com o pai se resumissem ao respeito e à admiração. Talvez não existisse amor, Lourenço não era afeito a estas bobagens.

O Sarará estava em decadência. Não fosse a promessa feita ao velho, já teria mandado embora a negra e o Arnaldo. Venderia tudo aquilo, de porteira fechada, pegaria a esposa do Arnaldo e iriam embora para a capital. Se arranjaria como advogado, podia ser que conseguisse mesmo alguma assessoria no Palácio e isto já estaria de boa monta. Mas tinha medo de tudo isso. O fantasma do pai ainda estava muito vivo naquele lugar.

Assim como acontecia todos os dias àquela hora, Arnaldo chegava vagarosamente junto a portinhola da varanda; dava um 'bom dia, Doutor' e ficava à espera de que o mandasse entrar.

- Bom dia, Arnaldo. Entre, tome um café comigo. As broas ainda estão quentes e o café está no ponto.

O pobre homem, envergonhado em tomar o café do patrão, resistia à tentação e, agradecendo efusivamente, tratava logo de mudar o assunto; falava da chuva que tardava, das roças que quase nada vingariam, das últimas cabeças de gado que precisavam de sal  e ração para aguentar a espera de tempos mais amenos. Tudo aquilo deveria ser castigo, só podia ser isso. Não dizia ao patrão, mas talvez fosse alguma dívida deixada pelo falecido e  podia ser que com alguma promessa e um tanto de novenas tudo pudesse mudar. Mas o Doutor não acreditava naquelas coisas, preferia os livros e as palavras difíceis. Desse jeito, o Sarará não ia muito longe.

Reis sentia raiva do Arnaldo. Como podia um pobre diabo desse arrumar uma mulher tão bonita?! Sentia vontade de lhe dar uns sopapos, meter-lhe duas balas na fuça, mas a promessa. Miserável promessa. Podia até imaginar os pensamentos do homem; devia estar pensando que ele era um frouxo, que não conseguiria resolver os problemas da fazenda, até devia sentir saudades dos tempos do velho. Mas o pai havia morrido, agora era com ele. E ele resolveria tudo. Respirou fundo, bebericou o café e olhou novamente para o pasto bastante seco.

- Não se afobe, meu dileto amigo. Eu já lhe disse que nesta canícula, a sofreguidão é o que impera. Não soltemos os impropérios ainda. Irei hoje à cidade; comprarei sal e ração. A chuva não há de tardar e tudo se assenta, afinal, não há mal que perdure.

Sabia que o Arnaldo não entendia quase nada do que ele falava, e isto lhe aprazia. Gostava de se mostrar superior ao pobre homem, embora invejasse a sua sabedoria. O empregado quase não falava e quando o fazia era para concordar com as suas palavras; mas sabia que em muita coisa  ambos discordavam e, às vezes, quando falava, dizia coisas simples, cheias de filosofias e sapiências, assim como são os sertanejos. A raiva lhe subia pelas ventas, mas ele respirava fundo e vaticinava:

- Não se apavore, meu caro, vamos tomar um trago. Espere o almoço, Maria já está refogando o frango, e o quiabo daqui a pouco já começa a ferver na panela.

Arnaldo se corava todo e isto fazia Reis se divertir. Não gostava de contrariar o patrão, mas Candinha já o devia estar esperando. Não queria brigar com a esposa.

- O senhor me há de desculpar, Doutor, mas o almoço eu não vou aceitar. Está cheirando mesmo e deve estar gostoso, a comida da negra Maria sempre é uma maravilha, mas o lá de casa já está quase pronto também. E Candinha não gosta de minha desfeita, o senhor sabe como é mulher, a gente não pode contrariar. Mas a pinga eu aceito, que é pra refrescar o calor. Se Deus não tiver dó...

Reis pegou a garrafa de pinga com escada de macaco e pôs uma dose em cada copo. Arnaldo pegou o saleiro que descansava na janela, botou um punhado nas costas da mão, tomou um trago e comeu o sal, enquanto o patrão bebericava o seu copo e imaginava Candinha preparando o almoço; Comida boa, como a esposa do Arnaldo.

domingo, 3 de novembro de 2019

AINDA CANDINHA



As lembranças da mãe ainda doíam, mas Candinha não reclamava. Preferiu se calar e seguir a vida, assim como fizera a velha desde a morte do marido. Nunca havia reclamado, apenas rezava, e quando chorava, fazia-o silenciosamente debaixo da mangueira. Se a menina via era por ser bisbilhoteira, pois a mãe sempre tinha procurado não demonstrar a sua dor. E Candinha a perdoava: se dera cabo da sua vida, foi porque não aguentava mais. O melhor era não sofrer e nem fazer com que a filha sofresse ainda mais. E isto Candinha compreendia.

O Sarará era um bom lugar para se viver e Arnaldo era um homem bom. A mãe ensinara que nunca devia mentir, e por isso se calava. Ele nunca a havia perguntado, assim como ela também nunca tocara no assunto; mas, se Arnaldo perguntasse, haveria de dizer a verdade: gostava deveras do pobre homem, mas nunca o amara. Talvez tivesse gratidão e, por isso, respeitava e queria bem ao pobre diabo.

O marido não era bonito e já era velho. A diferença de dez anos já se fazia sentir. Ela gozava o fogo da idade, sentia calor, suava, sonhava desejos e imaginava coisas; ele dormia toda a noite como uma pedra, falava sobre a lida na roça, o tratado dos cavalos, as conversas com o Doutor Reis. O patrão era um homem bonito: Loiro, forte, de olhar desavergonhado. Ela sempre pensava nele enquanto se dava ao Arnaldo, senão não gozaria, não sentiria prazer.

Desde quando Arnaldo a tinha tirado de dentro  do rio, sentia-se na obrigação de servi-lo, como se fosse sua escrava, sempre grata por tê-la salvado. Não que ficasse feliz em desvencilhar-se da morte; pelo contrário, aquela seria a sua libertação. Mas ele a tinha liberto de si mesma, dos seus traumas, das suas amarras. Candinha não o amava e se não pensasse no Doutor Reis também não sentiria prazer em deitar-se com ele, pois, que Deus a perdoasse, sentia nojo do seu cheiro de suor, do seu bigode raspando o seu corpo, da sua boca acarinhando o seu pescoço, mas devia-o pela sua vida e sentia-se segura ao seu lado.

O patrão também a desejava, ela sabia disso. Quando, propositalmente, andava de um lado a outro do quintal, molhando as plantas, pegando folhas verdes para o almoço, levando recados do Marido, ela percebia os olhos do homem a lhe comer inteira, como se estivesse pronto a agarrá-la. Ela sentia desejos de que ele o fizesse, mas recompunha-se e abaixava os olhos em sinal de respeito, envergonhada com os seus pensamentos, com seus pecaminosos desejos.

Arnaldo não merecia, mas ela tinha pena. Era um homem simples, sem grandes vontades. Aceitava todas as ordens do Doutor sem reclamar e, ela sentia, ele ainda agradecia por todas as considerações que o patrão lhe reservava. O marido não tinha maldades, não via que o patrão apenas se aproveitava da sua simplicidade, da sua força, do seu suor, enquanto a desejava. E isso lhe crescia a raiva do Arnaldo. Ela o respeitava, sentia-se agradecida, mas tinha raiva, e desejava o Doutor Reis.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

ENCONTRO

As lembranças da mãe batiam forte. Desde que tinha chegado ao Sarará, nunca mais voltara a Bahia. Por isso, criara coragem e pedira ao Doutor Reis que o deixasse partir; voltaria dentro de uma semana, depois de ver a mãe e o irmão.

A viagem tinha sido longa, o Benjamin parecia se arrastar por sobre as águas. As lembranças da velha faziam seu coração doer: o sol queimando a moleira, a mãe encostada na porta com o lenço na cabeça, vestido sujo das cinzas do fogão, os olhos lacrimejando enquanto dava o adeus ao filho retirante.

A vontade era de chegar logo a casa, abraçar a velha, tomar uns bons goles da água da cacimba: água doce, barrenta, gostosa como a sua infância nas Tabocas. Será que ainda existia água na cacimba? Será que a mãe ainda o esperava na porta, com o velho lenço, o vestido sujo, os olhos cheios de lágrimas?

O Benjamin queria pirraçá-lo. Em cada parada, uma eternidade. Deitava-se na rede tentando dormir; alguns meninos corriam de um lado para outro; uma mulher cantarolava uma música estranha que ela mesma havia acabado de inventar. Uma modorra tomava conta do seu corpo, mas não dormia. Apenas lembrava-se da mãe e tinha mais vontade de chegar.
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A mãe não devia estar em casa. As portas estavam fechadas, cerradas por fora. As plantas estavam quase todas mortas e a cacimba já não tinha mais qualquer gota de água. A tristeza tomava conta daquele lugar e muito pouco fazia lembrar os velhos tempos. Já não tinha as feições do pai, que morrera quando Arnaldo ainda era criança, nem o cheiro da mãe, a quem ele temia não mais encontrar.

Não permaneceu por muito tempo nas Tabocas. Pegou novamente a sua mala e saiu rumo à cidade. Talvez encontrasse o irmão em casa. Ainda não era tão tarde e , se tudo estivesse como antes, ele só iria para a pescaria de noite, quando ficava deitado sobre o barco, com o anzol armado, esperando pelos peixes que venderia na feira na manhã seguinte.

Também o irmão não estava em casa. Lúcia, a cunhada, viera até o portão. Arnaldo não deixara de perceber o susto que a mulher sentira ao encontrá-lo em pé junto ao portão:

- Entre, Arnaldo. Não esperava vê-lo mais por aqui.

-  Quem é vivo sempre há de aparecer! E o Tonho, está?

A mulher pôs-se a chorar convulsivamente. Depois de algum tempo, com Arnaldo silencioso a observá-la, recompôs-se; respirou profundamente e respondeu:

- O Tonho não volta mais, meu cunhado. Saiu uma noite para a pescaria e quando o trouxeram já estava morto. Disseram que foi um mal súbito, que nada puderam fazer.

Arnaldo segurou-se para não demonstrar o abalo que sentira. Ficou por um mínimo tempo em silêncio e perguntou pela mãe:

- E mãe? O que é feito dela?

- Morreu pouco depois que você partiu. Durante um tempo ficou na roça; depois sentiu umas dores no peito e quando veio para cá procurando tratamento, não voltou mais para a casa. Enterraram ela junto do seu pai. Mas entre; fique no barracão lá dos fundos. Não precisa ter pressa em partir.  Visite a sua mãe e seu irmão e, se quiser, sinta-se na sua casa.

Arnaldo lembrou-se do Doutor Reis. Ele haveria de saber o que fazer; certamente diria algumas palavras difíceis, para depois ordenar as primordiais resoluções. Entrou e jogou a mala sobre a cama. Recusou o café que a cunhada oferecera e foi dar uma volta pela cidade.

A Lapa continuava a mesma de quando descera para Minas. Uma cidade cheia de religiosidade, com suas ruas cheias de esgotos e mendigos, o cais silencioso àquela hora da noite e os cachorros cochilando debaixo dos velhos bancos de madeira.

Arnaldo não chorava. Nunca fora homem de chorar. Mas o peito doía, sentia um nó na garganta, uma tristeza enorme fazia suas pernas tremerem. Sentou-se à beira do Velho Chico e ficou olhando para o infinito. Aonde ia dar toda aquela água, em que parte do oceano? E ainda ia ela depois? Será que as almas do irmão e da mãe seguiram o curso do rio, ou foram para o céu, assim como pregavam os padres? Talvez fosse embora no outro dia. Era isso. Não tinha por quê estar ali. Voltaria para o Sarará, veria o Doutor Reis.

A lua cheia refletia-se nas águas do São Francisco. Arnaldo pensava que talvez toda aquela água fossem os choros de todas as pessoas que sofriam. Certamente que todo o mundo era tomado por dores, pessoas que sofriam e choravam sempre. Ele próprio sempre sofrera, desde quando o pai morrera, quando tivera que ir embora deixando a mãe para trás, até a morte da mãe e do irmão. A vida era um eterno sofrimento.

E enquanto sofria, Arnaldo pensava e olhava o rio com toda a sua calma, um silêncio quase assustador, entrecortado pelos peixes que vez ou outra saltavam por sobre as águas, como num show sem entusiasmo ante os tristes olhos do pobre homem.

Já era tarde quando uma menina apareceu de uma rua escura. Vestia um vestido simples e era bonita. Andava devagar, como se divagasse sobre algo. Não olhava para os lados, apenas seguia. Arnaldo ficou a observá-la sem, contudo, enxergá-la. Apenas estranhou o fato e como não pensasse em nada ficou olhando aquela cena.

Resoluta, a menina seguiu o seu caminho; entrou dentro do rio e continuou em passos lentos; depois, deixou-se afundar como se fosse engolida pelo Velho Chico. Os seus cabelos já flutuavam sobre as águas quando Arnaldo arrastou-a para fora d'água. Foi a mãe quem o ensinara que todo afogado deve ser retirado pelo cabelo, para não levar junto para a morte o salvador.

Ambos entraram no barracão sem que a cunhada os visse. Ela já estava dormindo e Arnaldo, com a menina nos ombros, entrou sem fazer qualquer barulho. Deitou-a sobre a cama, tirou-lhe a roupa molhada e cobriu com o único lençol que tinha encontrado por ali. Ainda sem qualquer pensamento, preparou um cafe, sentou-se à mesa e pôs-se a tomá-lo. Pensou em dizer alguma coisa quando ela acordou e durante um tempo ficou a observá-lo, mas, como  adormecesse novamente, continuou o seu café.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

CÂNDIDA, A ESPOSA DO ARNALDO



Antes de ser a esposa do Arnaldo, era Cândida. Sem o pai desde pequena, acostumara-se a trabalhar na roça para ajudar a mãe no sustento da casa. Eram apenas as duas numa casinha simples, próximo ao velho Chico, quase aos pés do cruzeiro, cerca de alguma distância do Santuário de Bom Jesus da Lapa.


Orlinda, a mãe, plantava feijão, milho e, nos tempos de menos chuva, espinhentos pés de Palma, com os quais a menina se cortava enquanto lavrava a terra. Era um sítio minúsculo, herança do velho Tobias, que morrera afogado no rio, numa noite quente, numa pescaria com os amigos. Dizem que também havia mulheres e que uma delas tinha sido a causa do assassinato, pois muitos não acreditaram no processo da polícia, pois o velho era exímio nadador acostumado a atravessar o Chico de um lado a outro por horas à fio. A mãe creditava toda culpa ao filho do Coronel Calixto; mas calara-se e guardava toda a mágoa para si, afinal, não existiam provas. Apenas certezas, e nada mais.

O que as duas colhiam mal dava para o de comer. A mãe não reclamava; rezava todos os dias com Cândida para que Deus provesse o sustento, para que chovesse e que não faltasse o básico em casa. A água a menina buscava no rio, trazendo o balde na cabeça, controlando o caminhar para que nada fosse desperdiçado. Por uns vinte minutos caminhava sem descansar, enchia o pote, duas vasilhas e voltava para mais uma remessa de água.

A casa não tinha energia elétrica e pelas frestas das velhas telhas comuns, a menina observava os fachos de luz entrecortados pelas folhas do coqueiro que balançavam nas noites de vento, até que  sono chegasse com todos os sonhos de menina-moça.

Durante algum tempo, a mãe entretera-se com a roça e a rezas. Sempre tomada por um olhar triste, falava pouco e quase nunca sorria para a filha. Às vezes quase não comia e deixava que Candinha repetisse o prato de feijão, arroz e palma; saía para debaixo do coqueiro e, assentada junto à porta, a menina via que ela chorava baixinho, com a cabeça entre os joelhos.

Já fazia quase um ano da morte de Tobias quando a mãe saíra pela primeira vez. Já era quase noite e a lua nascia cheia pelos lados do cruzeiro. Disse à filha que talvez demorasse, que dormisse e não abrisse a porta para ninguém. Cândida ainda quis perguntar aonde ia, mas calou-se e ficou olhando para a mãe que sumia depois do passadiço, vestindo um vestido de domingo, mal e sustentando sobre as gastas sandálias de salto.

As saídas maternas tornaram-se rotineiras, enquanto a fartura aumentava naquela casa. Durante o dia nada tinha mudado, ambas trabalhavam na arduamente na roça e rezavam pedindo as mesmas coisas de outroras. A mãe ainda não sorria, não olhava nos olhos de Cândida e sempre que a menina se via distraída, punha-se a chorar debaixo do coqueiro, com a cabeça entre os joelhos. Numa noite de calor, quando a lua nascia cheia pelos lados do cruzeiro, deu um beijo na filha – fazia tempo que não a beijava – disse que não tardasse a dormir e não esperasse por ela. Virou-se, atravessou o passadiço e nunca mais voltou.

Por alguns dias Cândida procurou pela mãe. Depois resignou-se e continuou a trabalhar na roça. A chuva quase não vinha e mesmo a Palma já não era tão vistosa como nos tempos de Orlinda. O arroz e o feijão estavam minguando nas vasilhas do velho armário de madeira e dinheiro já não havia para comprar qualquer mantimento. A menina, forçada a ser dona de casa, assentava-se debaixo do coqueiro e, como fazia a mãe, punha-se a chorar.

Novamente a lua nascia cheia. A fome fazia com que a barriga doesse. O calor era quase insuportável. Cândida estava deitada, quase nua, sobre o jirau onde dormia. O suor descendo pelo corpo. Notou que os seios eram durinhos, as pernas grossas e os cabelinhos da coxa brilhavam com o suor à luz da lua. Levantou-se de súbito, vestiu um surrado vestido de chita, em sutiã, e saiu. Trancou a porta e, sem olhar para trás, atravessou o passadiço. Lembrava-se da mãe e tinha vontade de chorar.

A mocinha caminhou por entre os trilhos até que chegasse à Lapa. Não sabia o que fazer, se pedia esmolas, se oferecia o seu corpo. Assentou-se nas escadarias do Santuário e pôs-se a rezar silenciosamente, depois levantou-se e caminhou lentamente pelas ruas cheias de esgoto, entre os mendigos, rumo ao cais do Velho Chico. Não haveria de ser como a Mãe, que certamente tinha vendido o seu corpo aos turistas para dar o de comer a ela. Não tinha qualquer boca para sustentar e, por isso, não precisava se sujar nos corpos de homens embriagados, porcos sem coração, sedentos de sexo em meio à sudorese daquela noite, enquanto as muriçocas zuniam nos seus ouvidos. Entregaria sua alma ao rio, acabando com o seu sofrimento, matando sua fome, juntando-se ao seu pai e, quem sabe, também à Orlinda que, decerto, haveria de não ter aguentado tamanha humilhação de vender-se e se jogara ao peixes. Seria aquele o seu fim.

A água estava fria, embora fizesse calor àquela noite. Cândida ia entrando devagar, deixando que a água engolisse cada parte do seu corpo virginal. Os pés iam se afundando na lama e um estranho prazer tomava conta do seu corpo. O rio a abraçava, assim como devia ser o abraço de um amor, e ela ia se afundando: as pernas, os joelhos, as intimidades, o umbigo, os seios, a boca, até que apenas o cabelo sobrasse por sobre as águas. A mocinha ia caminhando lentamente, sentindo-se consumida por um gozo intenso.

De repente, tudo escureceu, faltou-lhe o ar, faltaram-lhe as forças. Sentiu um bate forte na cabeça, como se alguém lhe puxasse pelos cabelos. Seria a morte que já lhe encaminhava para junto dos pais, ou seria o rio que a arrastava para o profundo do seu âmago? Sentiu a escuridão penetrar-lhe na alma e deixou que aquela força a arrastasse para junto de si. A cabeça doía, mas era bom. Aquilo lhe causava sofrimento, mas também lhe dava prazer; por isso, não resistia. Somente por isto.

Ainda era noite quando abrira os olhos. A cabeça doía, todo o corpo doía. Já não estava mais com o vestido. Estava toda nua, deitada sobre uma pequena cama, coberta por um lençol encardido. Não tinha morrido, ainda não era a sua vez. Uma lamparina acesa permitia que vislumbrasse o ambiente. Devia ser um velho barraco ou algum quartinho mais afastado; quase não havia móveis, apenas a cama, um pote de água e uma mesa, onde um homem tomava alguma coisa numa surrada caneca de alumínio. Ele olhou para ela e sorriu. Não era bonito. Ela tentou se levantar, mas tudo ficou escuro e, depois, apenas o silêncio.



segunda-feira, 28 de outubro de 2019

DOUTOR REIS

Com a morte da mãe, Reis fora mandado à Capital novamente, agora para estudar o Direito e se formar em doutor. Mal tinha voltado para casa depois de terminar o ensino médio quando, numa noite de muito calor, a mãe, que era cheia de pequenas dores e  reclamações, sofrera um dor forte no peito e morreu nos braços de Lourenço. 

O pai exigiu que a família guardasse o luto necessário e, assim que se viram todos desobrigados da tradição, ordenou que o rapaz voltasse aos estudos. Longe do Sarará, Carlos Henrique tinha ficado um tempo na vadiagem, aproveitando a vida nos botecos, deitando-se com as mulheres da vida, estudando o mínimo para não tomar pau e levar sova do velho. Morria de medo pai, sujeito de poucas palavras e mão pesada para os tabefes, olhar profundo e intimidador, justo e encorajado aos castigos paternos.

Depois de um tempo, pegou gosto pelo direito e também pelas poesias regadas a bebidas e cigarros, as quais sempre aconteciam nas casas dos colegas. Às vezes se apaixonava e punha-se destarameladamente a versejar; depois, com o espírito solidário dos poetas, fazia odes, elegias, sonatas e canções que falavam sobre coisas vagas, divagações e devaneios.

Engraçou-se com uma negrinha que trabalhava na casa de um colega, pensou em amasiar-se, mas, com a doença do pai, desfez-se do pensamento. Não teria coragem de mostrá-la ao velho Lourenço, além do mais, tudo aquilo eram coisas desnecessárias. Recebeu o diploma em cerimônia solitária, tendo justificado plausivelmente a causa à reitoria e, logo, desceu para casa.

No Sarará, encontrou Lourenço já decadente, mas ainda com as ideias inteiras. Resolveu que aprenderia rápido os seus ensinamentos e, logo que o pai lhe faltasse, buscaria a negrinha para junto de si. Com o tempo, porém, esqueceu-a de vez e viu que realmente eram coisas desnecessárias.

Arnaldo tornou-se o amigo necessário. Era um homem quase mudo, de palavras humildes e sem grandes pretensões. Ouvia tudo o que o patrãozinho dizia, chamando-o por Doutor, concordando candidamente, ainda que Reis compreendesse que quase nada o homem entendia, pois procurava usar de palavras difíceis, das quais, muitas, nem ele próprio conhecia o significado.

Carlos Henrique tranformara-se em Doutor Reis, um jovem advogado respeitado pelos vizinhos do Sarará e bajulado pelos empregados do velho, que aos poucos foram sendo despedidos da fazenda, restando Arnaldo e a negra, que  ajudara os pais a criá-lo e de  quem o velho o fizera prometer que nunca se desfaria. Ouvia muito o pai e conversava quase todo o tempo com Arnaldo, levando-o para as festas, os botecos e a casa de Catarina, onde ela mantinha umas meninas bonitinhas.

O Doutor Reis se esbaldava junto das meninas de Catarina, enquanto Arnaldo mantinha-se sentado junto ao balcão, cochilando e esperando pela hora de ir embora. O advogado ria do amigo e ordenadava que lhe dessem o de beber, para ver até onde aguentaria o pobre diabo.

Arnaldo era mesmo um homem bom. E embora Reis não aceitasse, gostava de ouvir as suas opiniões, sempre tímidas e cheias de velados perdões pela ousadia de pensar. Falava palavras poucas e simples, mas chegavam cheias de profundidades filosóficas e sociológicas, assim como são os pensares de todos os sertanejos e  catrumanos, homens sofridos, cheios de sapiências. Talvez por isso falasse difícil e quase sempre procurava colocar poréns nós pensamentos de Arnaldo.

E isso quase nunca o deixava dormir sossegado. Quase nunca.